terça-feira, 28 de setembro de 2010

Só pode tratar-se de um lapso

Diz o IDP: O Estado português não reconhece a qualquer federação desportiva portuguesa o direito á tutela ou disciplina de áreas de lazer, estando os diversos estatutos da UPD limitados às modalidades desportivas (e suas disciplinas) no âmbito das quais se realizem competições nacionais e internacionais. A que legislação se refere aquela entidade administrativa? O que são disciplinas da área do lazer? O lazer é um conceito sociológico. O tempo de lazer pode perfeitamente ser ocupado com práticas competitivas. Embora a sua inscrição na referida citação pareça indiciar uma oposição a esse tipo de práticas. Mas as federações desportivas que englobam práticas ou disciplinas não competitivas deixam de poder ter tutela sobre essas actividades? A ginástica de manutenção, o cicloturismo, as exposições columbófilas, o tiro de recreio, a dança de salão e o mergulho deixam de poder estar sob a alçada das respectivas federações com UPD? E o campismo vai para onde? Em que se fundamenta tão categórica afirmação? E ao abrigo de que doutrina de desenvolvimento do desporto?
No plano da história de algumas federações desportivas, sempre houve, disciplinas ou praticas com carácter recreativo. Embora para a maioria a vocação se centre - e em certa medida a dos clubes e associações desportivas de modalidade - numa oferta-tipo que é o desporto de competição. Mas esta dimensão da prática desportiva é uma pequena parte da procura. Esta evoluiu para o consumo de novos serviços e actividades desportivas (manutenção, recreação, condição física), cuja satisfação tem sido procurada em outras entidades. Não obstante esta tendência nada obsta, e será até desejável, que as federações desportivas se abram a novos tipos de procura e construam programas nesse sentido.
O modelo que existe, e que teima em se não reformar, foi concebido para uma procura estabilizada, muito em torno dos jovens e do desporto de rendimento, e não se adaptou a uma outra procura, mais diversificada e segmentada, com forte incidência da população adulta e sénior, assente na crescente industrialização de bens e serviços desportivos e em outros motivos para a prática do desporto. O que deve ser feito é apoiar quem procede ao alargamento da base das suas práticas. Não é penalizar.
O IDP financia junto da Federação Portuguesa de Atletismo um projecto de desenvolvimento da marcha e da corrida com preocupações salutogénicas que nada tem a ver com quadros competitivos. Aparentemente este programa conflituaria com a afirmação de que a UPD e a respectiva delegação de competências públicas se limita às modalidades desportivas “no âmbito das quais se realizem competições nacionais e internacionais. Ou não?
Mais estranho ainda é que as orientações da União Europeia para Actividade Física, em que um dos peritos subscritores é precisamente o actual presidente do IDP, refira, de algum modo lamentando, que em muitos casos no “sector desportivo organizado, as organizações desportivas (confederações, federações, associações, clubes) têm tendência para, de forma limitada, centrar as suas atenções na organização das competições” E que “essas organizações deveriam ser estimuladas no sentido de seguir estratégias no âmbito do desporto que tenham em conta a promoção do desporto para todos”. Em que ficamos?
Poucas têm sido, infelizmente, as entidades do universo associativo que têm alargado a base da sua oferta desportiva. Mas é importante que o façam. E a obrigação das autoridades públicas nacionais é estimular e incentivar esse desenvolvimento. Como elas próprias o afirmam em orientações politicas de âmbito europeu. Não devem é afirmar uma coisa para o exterior e praticar outra internamente.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

FPV e FVP - À procura da focagem política perdida

Queira o leitor desculpar - e também o anterior e caro escriba associado desta colectividade pelo reduzido período de latência do seu poste -, mas voltemos um pouco atrás no tempo para tentar recuperar uma narrativa até que o sono surja no tormento desta noite de insónia, uma vez que Proust não está a sortir efeito …

A 1 de Junho passado o Sr. Secretário de Estado da Juventude e do Desporto (SEJD) suspendia por despacho o estatuto de utilidade pública desportiva da Federação Portuguesa de Vela (FPV), pelo prazo de um ano, com a “suspensão imediata de todos os apoios financeiros resultantes de contratos-programa de desenvolvimento desportivo outorgados com o Estado, com excepção do relativo aos apoios ao alto rendimento e selecções nacionais e seu aditamento”.

No que respeita à gestão destes apoios excepcionados, a 17 de Agosto o SEJD determinava que: “Enquanto se mantiver a suspensão do estatuto de utilidade pública desportiva da Federação Portuguesa de Vela, o Comité Olímpico de Portugal proceda com base nos montantes reservados à Federação Portuguesa de Vela, relativos ao projecto olímpico Londres 2012 para apoio às actividades, à gestão directa daqueles apoios financeiros, garantindo a operacionalização das actividades de preparação, participação competitiva e enquadramento dos praticantes, treinadores, dirigentes e demais agentes envolvidos”

E concluía, lembrando outros tempos:
“Dê -se conhecimento ao Comité Olímpico de Portugal e à Federação Portuguesa de Vela, bem como aos praticantes e treinadores interessados”.

Com efeito, houve quem não gostasse de ver a cúpula do movimento desportivo ser tratada, no mínimo, como um serviço de tesouraria da administração pública e resolvesse bater com a porta em estrondo:

“Não considero adequado que uma ‘determinação’ de Sua Excelência o secretário de Estado seja passível, e produza efeitos, sobre os procedimentos – e comportamentos – a adoptar pelo COP, ao arrepio de tudo o que sempre nos habituámos a ouvir quanto à sua [do COP] independência e autonomia relativamente ao poder político”,

Outros, outrora ufanos da independência e autonomia do movimento olímpico, parecem conviver bem com esta situação e vão administrando dinheiros públicos por despacho do SEJD.

Ocorre que a FPV recorreu da suspensão proferida no despacho publicado em 1 de Junho e viu o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa dar-lhe razão, julgando improcedente a Resolução Fundamentada apresentada pelo SEJD, conforme atesta a sentença anexa ao comunicado do presidente da FPV o qual refere que: “Desta forma, fica claramente determinada pelo Tribunal a proibição de aplicar o despacho do SEJD daí decorrendo o dever da Administração de repor a situação que teria existido se o despacho não tivesse sido proferido. Nesse sentido, a FPV fez já um requerimento para que sejam tomadas medidas que minimizem as graves consequências criadas por uma situação que penaliza com total injustiça uma modalidade que tem dado tantas provas de êxito, mesmo nestas circunstâncias, como ainda recentemente aconteceu(...)".

Mas quem tutela a Administração, no que ao desporto se refere, parece ter outras ideias em relação ao futuro da modalidade, que não passam, para já - ao contrário de episódios recentes onde exortou, nesse sentido, outros a terem “coragem de tomar decisões” -, pelo cumprimento da lei e das decisões dos tribunais, preferindo apadrinhar, através da cedência de património desportivo do Estado, a cerimónia de constituição de uma comissão instaladora da novel (?) Federação de Vela de Portugal (FVP).

Não se pense, porém, que a vela é um caso sui generis na forma como o poder político cruza o seu olhar pelo cumprimento da lei e das decisões judiciais. A leitura que faz dos regulamentos de várias federações desportivas que persistem à margem do direito comunitário, cujo exemplo mais actual é o atletismo, manifesta uma inquietante acuidade que balança entre o olhar cirúrgico e vigil, que não se coíbe em interpretar diligentemente as decisões da justiça desportiva (será também assim quando os tribunais judiciais se pronunciarem?), e uma desfocagem, como que toldada pelo sono, a sonambular anos a fio num doce torpor.

Quando assim é, o repouso e o silêncio tornam-se bons conselheiros...

domingo, 26 de setembro de 2010

O ADoP

Devo confessar que, num primeiro momento, quando ouvia Carlos Queiroz a referir-se à ADoP no masculino tomei como uma falha de linguagem.
Mais tarde, pela repetição da referência ao ADoP, em particular nas entrevistas que foi concedendo, comecei a considerar outra hipótese: o uso do masculino queria acentuar a natureza pessoal daquele serviço público e, nessa medida, era premeditado.
Não sei ainda qual das minhas leituras, enquanto destinatário da mensagem, será a correcta. Todavia, esse género despertou-me para uma outra aproximação ao «Caso Carlos Queiroz» mas que, em bom rigor, se prende com a resposta legislativa e administrativa querida para Portugal neste bem específico domínio (o do combate à dopagem em Portugal).
E, por vezes, uma boa ideia ou ideal, são postos em causa aquando da elaboração das regras que os pretendem tornar efectivos.

A ADoP, como desenhada pelas normas da Lei nº 27/2009, de 19 de Junho – que estabelece o regime jurídico da luta contra a dopagem no desporto –, tem apenas dois órgãos: o presidente e o director executivo (artigo 21º, nº1).
Ao que se sabe – esta informação não temos por segura – não foi ainda nomeado o director executivo.
De todo o modo, pelo confronto das competências desses dois órgãos, resulta claro que a Autoridade Antidopagem de Portugal é, no rigor da realidade, o seu presidente que, nos termos da lei, é nomeado por despacho do membro do Governo responsável pela área do desporto (artigo 21º, nº3).

Significa este estado de coisas que a lei portuguesa enveredou pela personalização da Autoridade, quase se diria pela opção de um órgão unipessoal e afastou uma resposta colegial.
Mais, e independentemente da valia técnica e científica do actual presidente, somos tentados a afirmar que a ADoP foi erigida à sua imagem.

Aqui chegados, já nos encontramos, com um problema bem bicudo que emerge exactamente desta construção pessoal.
No «Caso Calos Queiroz», em face das suas incidências factuais, o presidente da ADoP viu-se impedido de exercer as suas competências e teve que ser substituído.
Em concreto, coube ao Presidente do IDP exercer as competências da ADoP em regime de substituição.
Ora, o exercício dessas competências não é de todo líquido, desde logo para o próprio membro do Governo responsável pela área do desporto o qual, em 19 de Julho, solicitou um parecer urgente ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República para ultrapassar as dúvidas legais quanto à solução adoptada.
E se, por hipótese, aquela órgão consultivo (em matéria jurídica) do Governo entender que a substituição operada é ilegal, projectando-se, desde logo, na validade da decisão da ADoP que sancionou Carlos Queiroz?
Laurentino Dias homologaria tal parecer, tornando-o obrigatório para os serviços dele dependente?

sábado, 25 de setembro de 2010

A política desportiva em Portugal (Parte I)

Um novo texto de José Pinto Correia que a Colectividade Desportiva agradece.
Em face dos recentes acontecimentos que têm trazido para primeiro plano o papel do Governo no domínio do nosso desporto de competição, e que têm tido expressão desde o caso que culminou com o recente despedimento do seleccionador nacional de futebol Carlos Queirós à intromissão no domínio das federações de futebol e de vela, com as retiradas parcial ou total da respectiva utilidade pública, respectivamente, passou a estar na hora de se fazer um balanço da política governamental para o desporto destes mais de cinco anos de mandato do actual Governo e do seu Secretário de Estado da tutela, Laurentino Dias.
Lembremos, desde logo, que estes vários anos da actual equipa governativa no desporto foram caracterizados por uma maioria absoluta no parlamento em toda a anterior legislatura e só desde há praticamente um ano passou a ser exercido o poder governamental em minoria parlamentar.
Em condições normais esse exercício de avaliação deveria ser realizado, em primeiro lugar, pelo próprio Governo, mais precisamente pela respectiva tutela, e considerar um quadro de apreciação comparativa entre as efectivas realizações e resultados e os objectivos estratégicos assumidos para todo este já longo mandato governativo.
Não se sabe se o Governo fará ou não essa avaliação algum dia, publicamente e logo em primeiro lugar no Parlamento a que deve sujeitar-se politicamente. Mas desde logo deve dizer-se que tal avaliação a existir nunca terá, em todo o caso, como base elementos detalhados de estratégia e objectivos prévios, mas apenas as linhas gerais do Programa de Governo que são os únicos elementos que permitirão realizar um qualquer balanço que este Governo e o seu Secretário de Estado venham eventualmente a querer fazer.
Sabemos também que não é habitual em Portugal, e no desporto isso é flagrante, os governantes darem a conhecer o diagnóstico efectivo das suas realizações e resultados, isto é, a prestarem conta dos seus poderes e mandatos eleitorais. E tal é uma condição que em matéria de assunção da denominada prestação de contas e correspondente responsabilidade política (aquilo a que os anglo-saxónicos chamam de “accountability”) está completamente ao arrepio dos deveres de resposta democrática perante os eleitores daqueles que ou são eleitos ou são designados como membros do Governo.
Veremos então no próximo futuro o que será ou não feito nesta matéria pelo Governo e pelo seu Secretário de Estado do Desporto de avaliação da política desportiva nacional em todos estes últimos mais de cinco anos de mandato ininterrupto.
Em qualquer caso, para realizar esse balanço seria necessário tomar em consideração dois elementos essenciais: um primeiro, é o conjunto de objectivos, metas, programas que o Governo estabeleceu, se possível recorrendo a documentos programáticos e estratégicos oportunamente produzidos e divulgados à comunidade nacional; um segundo, é o elencar das medidas de política e os programas que foram colocados efectivamente no terreno desportivo para darem dimensão e dinâmica à prática desportiva, desde os estratos populacionais muito jovens aos mais idosos.
Quanto aos primeiros, os documentos programáticos e estratégicos que consubstanciariam a actividade política da tutela desportiva nacional, deve dizer-se que ao longo de todo o longo mandato não se conheceu um único documento dessa natureza que tenha servido para fundamentar a intervenção governamental no domínio do desporto.
Não existiu, assim, que se conheça publicamente, qualquer quadro orientador e abrangente que tenha permitido justificar e definir as diversas opções de política desportiva, quadro esse que fundamentasse as escolhas e definisse os objectivos da política desportiva para os diferentes subsistemas, desde o desporto de base e escolar, ao profissional e ao de alto rendimento.
Não se pode, então, dizer que tenha existido uma visão global para o desenvolvimento do desporto conhecida publicamente, na qual se definissem as relações e os objectivos para os diversos subsistemas do desporto nacional.
Quanto aos segundos, os programas de fomento da prática desportiva, o que se pode afirmar é que pareceu ter sido completamente ignorada a dinamização efectiva e eficaz da relação entre desporto escolar e desporto federado e a intervenção sistemática e coordenada ao nível do desporto autárquico. Em todo este amplo mandato governamental em apreço não se assistiu a nenhuma iniciativa organizacional relevante de coordenação do desenvolvimento do desporto escolar com a intervenção das autarquias no desporto comunitário e destes dois níveis com o desporto federado. O que deveria ter sido feito inquestionavelmente, por iniciativa e orientação governamental no âmbito de uma política desportiva nacional de carácter activo e sistemático.
Não se assistiu, portanto, neste segundo patamar, a um trabalho conjunto e virtuoso de relacionamento entre as escolas, as autarquias e as federações desportivas, no alcance de uma política desportiva interdepartamental, que procurasse a efectiva integração dos diversos níveis desportivos, da base escolar ao topo competitivo federado e mesmo até ao profissional.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A Confederação do Desporto de Portugal

Um novo texto de Luís Leite.
No amplo debate sobre política e legislação desportiva que tem vindo a ser operado no Colectividade Desportiva, a questão fundamental parece ser qual o grau de intromissão que o Estado deve ter nos organismos desportivos, entidades de direito privado, tenham ou não o Estatuto de Utilidade Pública Desportiva.
Neste âmbito, haveria que ter consideração à opinião das Federações relativamente aos Decretos-Lei e Despachos que foram surgindo e, sobretudo, qual o papel da Confederação do Desporto de Portugal e do Comité Olímpico de Portugal nestes processos.
Que se saiba, nunca alguma destas entidades foi ouvida pelo Governo antes de levar à Assembleia da República os respectivos diplomas.
Porquê? Porque não interessava perguntar ao “servo” como entendia que devia ser tratado. E as Federações, submissas, encolheram-se sem nada contestar.

Entretanto, a Confederação do Desporto de Portugal, entidade que deveria supostamente reunir todas as Federações, procurar consensos, e ser interlocutora privilegiada do Governo sobre esta e todas as outras matérias, foi-se vendo amputada de algumas das Federações mais representativas, deixou de ter capacidade representativa do movimento associativo e passou a limitar-se a organizar anualmente uma Gala para homenagear, de forma indiscriminada, os nossos campeões.
Em simultâneo, tem sido evidente a colagem (diria vassalagem) do seu Presidente à Secretaria de Estado, como se a CDP se tratasse de uma mera extensão daquele organismo da Administração Pública.
Por outro lado, é mais do que evidente a perda de força e influência das Federações, a maioria dependentes financeiramente do Estado, que tentam safar-se cada uma por si, através de estratégias ocasionais, conjunturais, no melhor estilo “salve-se quem puder e o último que feche a porta”.

Face a esta evidência, só restaria à CDP extinguir-se de vez, já que ninguém parece desejar o seu renascimento, nem a Lei em vigor lhe presta a menor atenção. Só que para se extinguir era preciso que as Federações aparecessem por lá, numa Assembleia-Geral e fechassem a luz e a porta. O que não parece possível, porque a CDP, na prática, já não existe.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Voltando ainda atrás

O trabalho dos médicos das brigadas do controlo da dopagem nem sempre mereceu da parte das pessoas e entidades controladas a adequada colaboração. Insultos, provocações e por vezes ameaças sempre as houve. Dificuldades em chegar aos atletas também. E daí ser sensato que a legislação preveja penalizações para quem, por acção ou omissão, obstrua ou perturbe a recolha de amostras no âmbito do controlo da dopagem. É disto e apenas disto que se trata: a recolha de amostras. A latitude dessa perturbação, o que se entende por tal, e até onde é licito considerá-la, está deixada à interpretação da entidade fiscalizadora.
O que é novo no caso Carlos Queiroz? A natureza do ocorrido (impropérios ao titular do organismo responsável pelo controlo); a autoridade administrativa, contrariamente ao ocorrido em outras situações, não ter “deixado passar”; o avocar do processo por não ter ficado satisfeita com a decisão da instância federativa. Em tudo isto fica a dúvida se o fez por iniciativa própria ou por indicação/sugestão/condicionamento do responsável político. Não sabemos. Mas conhecemos o comportamento político do secretário de estado do desporto. Lamentável. Antes, durante e depois da decisão da ADoP. Desnecessário à luz das competências dos organismos envolvidos. E fragilizando – se a ele próprio, ao IDP e à ADoP. Mas ele está de passagem. As instituições ficam. E isso é que é grave.
A ADoP é uma entidade autónoma que responde pelos seus actos. Se havia explicações a dar sobre o processo era ao presidente do IDP que cabia fazê-lo. Porque foi quem o avocou em virtude da escusa do presidente da ADoP.O presidente do IDP, que se saiba, não tem porta-voz. O que o governante fez, e o que disse, permite retirar a conclusão, que até pode ser injusta, que foi ele quem comandou, influenciou e instrumentalizou todo o processo. Uma coisa é certa: prejudicou a imagem da administração pública desportiva e da ADoP. Estávamos perante um eventual ilícito da exclusiva competência de uma autoridade administrativa e nesse âmbito deveria continuar. Ao governante bastaria garantir, tão só, o normal funcionamento das instâncias com competências próprias na matéria. Mas esperar que este secretário de estado do desporto exercesse as suas competências de modo discreto e reservado era como esperar que o céu descesse à terra. Se fosse para não dar nas vistas tinha escolhido outra profissão.
Poderia a ADoP ter feito o que fez? Avocar sim. No plano substantivo a decisão parece acolher inúmeras fragilidades. Mas essa é uma matéria que os especialistas apreciarão. E se necessário os tribunais. O direito não é uma ciência objectiva. Uma qualquer norma tem o espírito de quem a elaborou, o entendimento de quem aprovou e a interpretação de quem a aplica e o juízo de quem a fiscaliza. Não são necessariamente coincidentes. E face a isso, querendo, como no Santo Ofício, uma injúria a um familiar do presidente da ADoP pode ser sempre entendido como algo que alterou a normalidade de um procedimento, um factor externo imprevisto que condicionou um acto médico. Mesmo que se reconheça que esse condicionamento não foi ao ponto de impedir o referido acto ou sequer de o alterar na sua essencialidade: a recolha das amostras. E recolha de amostras com erros de procedimento sempre houve, com impropérios ou não.
Uma coisa é já certa. Independentemente da decisão das entidades de recurso ninguém sai bem desta novela: quem injuriou, quem julgou e quem mandou julgar. E fica por demonstrar que, o que se passou, tem algum a coisa a ver com o combate à dopagem. E se o não tem qualquer tribunal comum era suficiente para avaliar e decidir sobre eventuais ilícitos praticados.


domingo, 19 de setembro de 2010

A tribo dos milagres


Era expectável e natural que o peregrino se voltasse para Fátima, por estar à mão de semear e por usufruir da justa fama de altar do mundo e porto seguro dos agoniados e sedentos do amparo e sustento dos céus. É certo que ali os milagres não são dados gratuitamente. De resto basta andar alguns metros de joelhos na aspereza da esplanada para que a pele se rasgue e o sangue escorra abundante, a ponto de tingir de vermelho as calças e o chão. Mas, à falta de meios mais modernos, a sangradura foi sempre um bom remédio para curar males de origem difusa, instalados nos recônditos da consciência e da alma.
Todavia o romeiro seguiu noutra direcção. Por mais paradoxal que seja, São Jorge, padroeiro da bola de Portugal, segredou-lhe mentalmente que não ligasse à tradição, esquecesse o ditado (De Espanha nem bom vento, nem bom casamento!) e ignorasse a sensata imploração das boas e experimentadas gentes de Idanha-a-Nova à Senhora do Almortão: Senhora do Almortão / ó minha linda raiana / virai costas a Castela / não queirais ser castelhana.
Os seus ouvidos, duros à harmonia e melodia dos sons, fecharam-se à sabedoria e excelsitude da canção e ei-lo, que se faz tarde, a caminho de Madrid - a salvífica centralidade - como um Egas Moniz de corda ao pescoço, à procura de comover São José e conseguir levá-lo a servir de intermediário na difícil obtenção dos favores e graças divinas.

Sabe-se quão influente, mágico e milagreiro é São José; por isso mesmo a peregrinação prometia ser coroada de pleno êxito. Ademais o viajante não metia pés ao caminho para salvar a pele; ia a “bem do po(l)vo”. Partia confiante de que a fé arrasa montanhas e movido pela ânsia de se encontrar com o novo e cativante Moisés da nossa áurea, iluminada, edificante e transcendente contemporaneidade. Este, por certo, não se furtaria a subtrair do naufrágio eminente as diversas tribos da nação boleira e a conduzi-las à terra prometida. O raciocínio era lógico, rigoroso e sábio e o plano perfeito, elaborado a condizer.
Mas a arte está nos detalhes; se um pormenor for descurado, lá vai tudo por água abaixo. E assim foi também desta vez.
Madrid tornara-se, no entretanto, numa labiríntica Meca, infestada de agentes de notação e ‘rating’, peritos em especular e ‘blefar’ por conta da Wall Street do futebol. E o taumaturgo há muito que oscila entre o profeta, o ‘mentalista’ e o duende. Obviamente o seu carisma mantém-se em alta. Nele, como em todo o líder e ditador carismático, a realidade cede o lugar à retórica balofa e esta transforma-se na varinha mágica de realização da tão ansiada revolução. É dele que emana o sentido de tudo; aos demais somente resta renunciar à razão. Reflectir sobre o real e as suas contingências e contradições não é tarefa para os cidadãos comuns; é competência exclusiva de um guia, travestido de aiatola ou profeta. Apenas ele pode salvar-nos da dúvida, incerteza e insegurança. Nada nele é esquinudo, confuso, dúbio ou incerto; pelo contrário, tudo brota dele confortavelmente claro, lógico, óbvio, redondo e cristalino. O céu e o inferno estão ao alcance de um estalo dos seus dedos.
Se a boca do oráculo determina que algo é verdade, então as suas palavras são como os toques de Midas a operar uma admirável e inacreditável metamorfose: materializam a verdade, mesmo que esta o não seja e se incline mais para a camuflagem e mistificação, a representação e teatralização da inverdade e até da mentira. O profeta, para conservar e fazer jus ao seu estatuto, não apresenta a ‘sua’ verdade; ele é detentor absoluto e único da verdade e esta prescinde de qualquer fundamentação. É um crisóstomo em permanente trabalho de parto de dogmas sagrados.
Este dom aumenta a crença e adulação da multidão dos carentes e desvalidos fieis: as ‘verdades’ proclamadas pelo líder devem ser aceites, comungadas, bebidas, difundidas e defendidas a todo custo. Não se pode admitir, permitir ou sequer imaginar que elas sejam confrontadas, abaladas e negadas. Consentir semelhante sacrilégio significaria abrir as portas à desmontagem de todo o sistema de pensamento sobre o qual assentam as mentiras, usadas justamente para destruir a lucidez, a pluralidade e a racionalidade das diferentes visões.
E agora? A jogada era de mestre e com uma parada muito alta. Se fosse bem sucedida, o êxito seria estrondoso e arrasador dos provocadores da catástrofe e dos arautos da desgraça. Porém o bom, esforçado e sacrificado samaritano regressou de Madrid com as mãos a abanar.
Afinal no presente não há mais quem faça milagres como antigamente. Importa, contudo, não adulterar o legado da história: no passado nunca se fizeram milagres e impossíveis a partir do nada. Jesus precisou de água para a converter em vinho; e só na presença de um exigente peixe transformou o vinho tinto em branco.

Nenhum dos protagonistas da tragicomédia sai bem do papel que, de um ou outro modo, assumiu na peça. Todos saem enfarruscados das cenas em que participaram. Não passaram de arremedos ou duplos muito mal conseguidos dos originais.
São Jorge, ledo e quedo, cuidou de não dar muito nas vistas; não se afoitou a atravessar publicamente a penumbra do subterrâneo em que ganhou entronização e notoriedade. São José, se continuar neste andar e desempenho, se não encontrar a justa medida dos seus passos e não impuser limites e freios ao egotismo e egolatria, arrisca-se a descambar paulatinamente para um ídolo com pés de barro e a ver esmorecer o culto tribal erguido em torno do seu nome e figura.
Quanto ao romeiro, parece um quixote solitário, perdido e abandonado. Traído pela cegueira do desespero, o último dos abencerragens caiu no próprio laço, colhendo o fruto amargo e o ensinamento requentado de que o mediatismo manhoso e calculado dos gestos e palavras não traz de volta o desejado, por mais enevoadas que estejam as manhãs. Lá ao longe, do outro lado do mar, São Luís Felipe apressa-se a acenar-lhe efusivamente. Mas não passa de uma miragem.

sábado, 18 de setembro de 2010

O desporto português necessita de mais ciência

O texto que se segue é da autoria de Fernando Tenreiro cuja colaboração se agradece.

Existem problemas gerais e este é um deles que não pode ser criticado a ninguém.
A referência ao Dr. José Manuel Chabert é necessária enquanto autor das frases.
Do ponto de vista científico existem lacunas no pensamento político desportivo em Portugal.
As frases são insuficientes do ponto de vista científico pelos motivos que indico a seguir.
Eis as frases:
Muito diversa é a situação das organizações desportivas (federações desportivas), que assentam em verdadeiros "monopólios de facto", não juridicamente regulados, derivados da sua filiação nas correspondentes organizações internacionais; organizam espectáculos desportivos, por vezes com entradas pagas de milhares de espectadores, sem garantias de efectiva lisura na obtenção dos resultados desportivos; têm uma postura compreensiva e tolerante para com práticas que atentam contra a saúde pública (doping e outras); não promovem a formação de praticantes nacionais; não procuram garantir a formação de quem enquadra tecnicamente os praticantes; toleram (ou estimulam) atentados à ordem pública, não sancionando devidamente os apelos clubísticos à violência; são coniventes com práticas de lavagem de dinheiro e branqueamento de capitais; estão minadas por fenómenos de nepotismo e compadrio; etc...etc...Em suma: no desporto existem um conjunto de áreas onde se jogam interesses públicos muito sensíveis. Defender a desregulação ou a regulação mínima é pois - e não pode deixar de o ser - indirectamente, ser também conivente com as perversões de funcionamento destas organizações.”
Existem 3 questões fundamentais:
1. As federações são efectivamente monopólios dependentes de organizações internacionais que competem concorrencialmente e para as quais não existe substituto à altura, como reconheceu a União Europeia no Livro Branco do Desporto.
2. Há lisura nos resultados desportivos, há combate ao doping e violência, há formação para a oferta privada.
3. A falta de formação para a oferta publica, os atentados à ordem pública, a corrupção e o nepotismo são função complementar e sancionados pelo Estado.
Explicando teoricamente e justificando que não pode ser unicamente uma razão crítica da actuação das federações:
1. As federações são monopólios proprietários de actividades desportivas, o que está referido no primeiro ponto.
2. A regulação privada permite a organização da produção para maximizar o consumo e isso inclui a lisura dos resultados, sem doping e violência e formação adequada a todos os níveis. Estes comportamentos e regras permitem a produção privada.
3. A produção pública é superior porque o Estado investe no associativismo para obter resultados desportivos e que podem passar por uma formação superior, combate ao doping, corrupção e marginalidade.
Desenvolvendo:
1. As falhas privadas existem: Se as regras privadas não funcionam, se as federações falham a sua regulação, podem ir à falência.
2. As falhas públicas também existem: as federações apesar do apoio público não produzem mais do que se actuassem sozinhas e se existe a percepção de insuficiência numa formação superior, combate ao doping e corrupção e marginalidade.
Em conclusão:
Sem ofensa, não se podem misturar as questões.
Só a análise científica permite identificar causas, estruturas e relações intermédias e consequências.
As razões aduzidas contra as federações, 1) não são motivo de crítica, 2) são-no parcialmente e 3) cabem ao Estado, também.
Moral da história
A sensibilidade do interesse público é o de respeitar a peculiaridade dos agentes privados, para maximizarem o seu produto, que no caso são as federações desportivas e que não existem substitutos ao benefício da sua produção no mundo moderno.
Estas frases ao sugerirem o preconceito político contra as federações desportivas mostram as limitações científicas do pensamento político desportivo português e justificam a razão do nosso atraso nos diferentes níveis de produção desportiva.

Assinado: um não cientista. Parece-me de que…

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Faltam estudos de Gestão e Economia do Desporto


Um novo texto de José Pinto Correia que a Colectividade Desportiva agradece.

Quando há muitos meses atrás terminou a participação portuguesa nos Jogos Olímpicos de Pequim da qual advieram resultados insuficientes para as expectativas que os dirigentes e o País tinham à partida dos atletas para aquela importantíssima competição mundial, ouviu-se com inusitada frequência falar nos meandros mediáticos e não só da necessidade de repensar e reorganizar o desporto de alta competição entre nós. Tal “empresa” foi desde logo afirmada a quente nos Jogos de Pequim pelo próprio Presidente do Comité Olímpico de Portugal (COP) como indispensável.

Acontece todavia que este tipo de afirmações carecem genericamente de substância e de consequente empenhamento, quer associativo quer governamental, pois não indicam desde logo quais os domínios e modelos dessa mudança, nem, por maioria de exigência, que opções novas seriam necessárias, que outra estratégia de desenvolvimento e organização ou mesmo que outros tipos de liderança e de líderes deveriam protagonizar tais processos de renovação desportiva em Portugal. Estas afirmações correm subsequentemente sobre um autêntico e completo vazio de iniciativa político-governamental, à cabeça, e também da completa falta de acções consequentes pelos dirigentes máximos das estruturas associativas desportivas e do próprio Comité Olímpico de Portugal.

Ora, esta incapacidade de apresentar os fundamentos racionais de reorganização e/ou renovação do nosso desporto de alta competição assenta primariamente no facto de não existirem estudos sérios e profundos sobre a realidade organizativa, de gestão ou económica desse mesmo desporto. Nestes vários anos da legislatura do actual Governo não se assistiu a nenhum esforço de realização de trabalhos de estudo sério sobre a gestão e a economia do desporto português, quer sob iniciativa do próprio Governo e da sua orgânica de administração pública desportiva, nem do próprio Comité Olímpico ou de outras estruturas do movimento desportivo.

Não se conhecem, deste modo, desde há mais de cinco anos – que são passados com o actual Governo em funções – quaisquer estudos e investigações detalhadas também sobre a organização e gestão ou planeamento estratégico do desporto português.

Não existiram ao longo de todo este tempo, por conseguinte, quadros de diagnóstico ou de reflexão sobre a organização, gestão e planeamento das federações desportivas, nos quais se pudessem avaliar os critérios de funcionamento das respectivas estruturas, os processos de decisão, as principais carências organizacionais e técnicas, os modelos de liderança ou, ainda mais, os métodos de planeamento estratégico e de fixação dos objectivos essenciais de desenvolvimento, por exemplo.

Por outro lado, não se conhecem igualmente estudos que se reportem aos métodos de trabalho entre as federações e os clubes desportivos, como é realizada a cooperação e coordenação dos respectivos esforços de desenvolvimento das modalidades e dos atletas e treinadores respectivos, ou mesmo sobre o modo como é feita a preparação técnica e científica dos treinadores e o apuramento metodológico do treino das diferentes modalidades.

Não se conhecem também quaisquer estudos sérios e validados cientificamente sobre gestão e planeamento estratégico das federações desportivas, sobre economia da utilização dos recursos e análises de custos-benefícios no desporto, incluindo as dos grandes eventos desportivos realizados no país, ou ainda por maioria de razão sobre o próprio valor económico do desporto para o país.

E este valor económico exprime-se nomeadamente em termos de valor acrescentado e de actividade económica nos sectores e empresas ligados ao desporto (o vulgar PIB), de emprego criado e gerado pelo desporto, e ainda do cálculo de benefícios decorrentes da redução do absentismo ou do aumento da produtividade pela prática desportiva ou pela substancial redução das despesas e encargos de saúde conseguidas pela melhoria da qualidade de vida dos praticantes desportivos (sobre estes elementos a situação existente no Reino Unido é exemplar e deve ser considerada como modelo ou “benchmarking”).

Esta situação de flagrante insuficiência de estudos de gestão e organização do desporto em Portugal é tanto mais evidente quanto é certo que nem a actual Secretaria de Estado do Desporto nem o seu Instituto do Desporto de Portugal (IDP) promoveram ou publicaram nestes últimos anos qualquer estudo do teor dos acima referidos – e, por isso mesmo, não é possível encontrar nos sites destes entes governamentais nenhuma referência desse tipo, sendo que o IDP já há mais de cinco anos que deixou de financiar a investigação em desporto que anteriormente promovia.

Portanto, o país não esteve ontem e continua a não estar hoje em condições de reflectir com bases sólidas sobre a reorganização ou renovação do seu desporto de alta competição.

Não tem para esse empreendimento qualquer base de diagnóstico ou de análise estratégica, de planeamento e gestão ou de organização válida, onde basear a reflexão e escolher novos caminhos ou estratégia de mudança e desenvolvimento.

Por isso, quando se ouvem alguns dirigentes desportivos de topo ou mesmo do Governo a bradarem em determinadas ocasiões política e/ou mediaticamente convenientes pela renovação do sistema desportivo é justo perguntar-se-lhes imediatamente o que entendem por tal renovação, o que querem e vão fazer com esses propósitos e em que mudanças organizacionais e diagnósticos baseiam essa sua pretensão.

Porque as verdadeiras mudanças de funcionamento do dito sistema desportivo deveriam querer dizer, desde logo e à cabeça, mais e melhor organização e gestão estratégica nas federações, no Comité Olímpico de Portugal e no Instituto do Desporto e Secretaria de Estado do Desporto. E estas fundamentadas em estudos sérios e cientificamente validados sobre essa organização e gestão e sobre a economia do desporto.

Nunca tais mudanças poderão resultar, como tem sido apanágio no passado recente, na falta desses instrumentos racionais e metodologicamente convenientes, fazendo com que tudo fique apenas em opiniões circunstanciais despidas de contributos profundos, sistemáticos e validamente eficazes, ou num voluntarismo pragmático despido de quadros de orientação económicos e estratégicos.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Elogio dos pneus

O automóvel é, sem dúvida, uma grande criação e instituição do génio humano. Mas não é perfeito, nem completo. Para cumprir a sua função, depende da incorporação e do concurso de algo que não pertence à sua estrutura original, como é o caso dos pneus. Sem eles um carro não andaria, logo seria uma coisa inútil.
Por isso mesmo o automóvel é um artefacto superior e sublime e, ao mesmo tempo, frágil e humilde. Concomitantemente é um símbolo da nossa humanidade, tanto daquilo que a exalta como daquilo que a convida a ter os pés assentes na terra. Exactamente por ser carente da prótese dos pneus. Estes não fazem parte do carro propriamente dito, não trazem a sua marca; são produto de outra proveniência. Quem faz carros não quer saber do chão; deixa essa preocupação para outros. É isso que constitui o objecto dos fabricantes de pneus e perfaz a missão destes.
Um carro simboliza elevação, inovação, ousadia, criatividade, aventura, sonho, estilo, beleza, agilidade, estética, potência, bem-estar, limpeza, conforto. Não quer tocar na poeira, na sujidade, na lama imunda, nos excrementos, no lixo abjecto, na chuva e no óleo do asfalto, no piso escorregadio e traiçoeiro, na irregularidade dos caminhos e estradas. Delega esse serviço baixo e degradante nos pneus; é precisamente para isso que eles são feitos, é para isso que eles são pagos, é nisso que eles concorrem entre si, tentando cada um provar que é melhor do que os outros no cumprimento de tal finalidade e que dá garantias de maior durabilidade e fiabilidade no desempenho do seu papel rasteiro.
O negócio dos pneus é muito bom e rendoso; ninguém se dá ao cuidado de tentar saber dos proventos que gera e dos métodos que segue, por ser um domínio meio obscuro e ignorado, como o dos cangalheiros. Não se regateia e discute muito o preço a pagar pelos actos que nos causam alguma repugnância ou constrangimento. Sem pneus o carro não andava e afogava-se na imundície. Mesmo o avião, que tem asas para voar, sem pneus não levanta e arrisca-se a uma aterragem perigosa.

Também nós não prescindimos dos pneus (solas de couro ou borracha) dos sapatos. Sujam-se e gastam-se, porém temos à mão materiais de limpeza e substitutos à altura para todos os gostos, estações do ano, situações do tempo e natureza das tarefas a cumprir. Temos sapatos e pneus de todas as formas e feitios: para andar, para correr, para praticar os diversos desportos, para casa, para a rua, para a praia e a montanha, para o Verão e o Inverno etc. A variedade não tem fim.
Os pneus são, portanto, de uma utilidade inestimável e expressão da fecundidade do nosso engenho e inspiração: aliviam-nos, compensam-nos, acrescentam a nossa liberdade e margem de acção, permitem que voltemos a consciência e atenção para causas, ideais, metas e alvos elevados. Com eles evitamos ferir a nudez e sensibilidade dos pés na aspereza e rudeza do chão. Temos neles um prestimoso intermediário para esse contacto.
Os pneus fazem esse trabalho feio e sórdido, todavia conveniente. Nisso sobrelevamos a aparente esperteza e nobreza das aves. Elas dispensam os pneus dos sapatos; e isso pode parecer prova de uma manifesta superioridade e leveza, tanto mais que assim deitam fora um peso escusado e logram aventurar-se a voar através do espaço imenso dos céus. Só que, quando descem à terra para se alimentar, chafurdam directamente com os pés na carne putrefacta. Triste destino é o seu!
Sejamos, pois, gratos, lúcidos e compreensivos em relação aos pneus. Eles fazem o serviço sujo, indigno e indecente. Sem eles seríamos como os abutres e aves de rapina. Andaríamos com os pés atolados naquilo que nos desqualifica. Devido a eles e aos seus fabricantes, agentes e vendedores podemos andar limpos e aprumados, cheirar bem, ter um porte decente e agradável, sem vergonha e enfado. Afinal dá-nos jeito suportar um rei (com esta ou outra designação) dos pneus, tanto mais que estes são um produto natural: são feitos de tiras da sua língua.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Da ditadura à democracia

O Estado, em matéria de desporto,tem competências que pode delegar nas federações desportivas. Para que tal ocorra as federações desportivas têm de preencher determinados quesitos organizativos. A questão, no plano jurídico-formal , é relativamente pacífica. Mas não o é no plano político. O Estado só pode delegar o que tem. E o que começou por ter era bem menos do que aquilo que agora diz ter. Porque o foi buscar precisamente aqueles a quem depois delegou.
As competências do Estado estão plasmadas no texto da Constituição. Incumbe ao Estado promover, estimular, orientar e apoiar o direito de todos à cultura física e ao desporto em colaboração com as escolas, associações e colectividades desportivas. Nada mais. O modo como Estado o faz plasma-se na respectiva lei de bases. Que por sua vez abre um conjunto de disposições complementares desagregando a níveis cada vez mais específicos o propósito constitucional enformador de todo o complexo normativo/legislativo.
O que se tem vindo a assistir é que a obrigação constitucional do Estado tem tido âmbitos e latitudes de crescente normativização, regulação e controle/fiscalização. O próprio desporto ao se desenvolver exigiu muita dessa intervenção. Mas também por vontade e decisão politicas. Tem prevalecido um entendimento ideológico/político de que, no caso das federações desportivas como entidades colaborantes com o Estado,não são livres de se organizarem como querem. Não basta avaliar se o que fazem merece ou não o apoio do Estado. Precisam também de se moldar ao que o Estado entende ser a melhor forma de cumprirem a sua missão. E nesse sentido caminhou-se para uma crescente estatização dessas entidades. No que em Portugal não é original.
Historicamente, na generalidade dos países europeus, Estado e federações desportivas coexistiram numa relação de efeito nulo. As federações desportivas obedeciam tão só ao regime geral que regulava o associativismo. No nosso país isto nunca ocorreu desde logo no exercício da liberdade associativa, por força do condicionamento da ditadura. Tudo passava -das “eleições”a muita das actividades das federações - pelo crivo do Estado. Mas com o regime democrático a relação modificou-se. No sentido de dar mais autonomia às organizações desportivas. Numa relação, é certo, sempre tensa. E de crescente condicionamento. O poder governamental entendeu dever ter uma regulação e um controle não apenas sobre o modo como aplicavam os dinheiros públicos, mas também sobre o que faziam e como o faziam. Incorporaram mais obrigações nas obrigações iniciais do Estado. Que depois delegaram. Através de um sofisma: o que se delegou é o resultado, em parte, de prévias avocações que se fez a favor do Estado de práticas e opções inscritas na matriz inicial do associativismo das federações desportivas. Com que argumento? O do interesse público. Esta tendência cresceu na exacta medida em que aumentou o grau de financiamento público. E com ele a dependência das organizações desportivas. A autonomia do movimento desportivo passou a uma figura retórica.
O complexo jurídico-normativo aumentou. A sua constante alteração, a um ritmo surpreendente, passou a elemento determinante. Alargou-se para campos cada vez mais específicos. E à medida que essa especificidade se aprofundou mais se distanciou do propósito inicial - o direito ao desporto – para se dedicar a temas que dificilmente se podem considerar como conexos com a original obrigação constitucional.
A questão politica da relação Estado/federações desportivas é hoje relativamente pacífica. Ninguém está interessado em discuti-la. Menos em contestá-la. O regime jurídico das federações desportivas é o exemplo perfeito da anomia do movimento associativo e do paternalismo do Estado. Problema que não é desta “lei”. A questão é bem anterior e está inscrita na matriz do associativismo desportivo português. Da ditadura à democracia. Financeiramente dependente. E cultural e politicamente subserviente.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Que impacto terá e para quem?

Quer se goste quer não se goste, o Sport Lisboa e Benfica é o maior clube Português de uma forma transversal, nem que seja pelo número de sócios e simpatizantes que dinamiza. Os últimos estudos diziam que em Portugal eram aproximadamente 4,3 milhões.

"Futebolisticamente" falando, continua a possuir inúmeros títulos e a ser o clube em Portugal com mais títulos, mesmo após o 2.º jornal diário português em vendas ter dito que não, e no dia seguinte ter desculpado-se pelo erro com uma nota de rodapé numa página perdida. Mas isso nem interessa, é um dos grandes clubes portugueses no futebol e outras modalidades e principalmente, na quantidade de pessoas que move.

Hoje, assiste-se a uma tomada de posição desse clube relativamente ao tão badalado Secretário de Estado. O comunicado foca diversos pontos, alguns deles até de gestão desportiva, quer do clube quer da própria competição. Mas será interessante perceber o que esta tomada de posição de um clube com esta dimensão pode trazer para a posição, quer do Governo quer da pessoa em si. E será que o clube tem a noção das consequências que pode trazer para si próprio. E se o Estádio receber uma competição que o Secretário se desloque para entregar algum prémio?

Como irá reagir o Governo? Será que ainda são arestas do caso 'Assis'? Que importância tem Queiroz neste caso? Como irá o Secretário gerir esta situação?

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O Desporto e a Cidade em Portugal (Notas de futuro)

Um texto de José Pinto da Correia que a Colectividade Desportiva agradece.


Os países estão hoje envolvidos em processos de criação de riqueza que assentam na promoção de actividades económicas, sociais e culturais que apresentam valor e funcionam como elementos fundadores de bem-estar e qualidade de vida. As empresas são os principais criadores dessa riqueza e são também elas que permitem aos diferentes países e espaços económicos e geográficos competirem pela afirmação das respectivas capacidades e potencial.

As cidades foram sempre historicamente os principais centros criadores e acumuladores de riqueza, pois agregam grandes massas populacionais, mobilizam projectos individuais e colectivos de consumo e produção de bens e serviços, sobretudo daqueles que mais inovam e acrescentam valor em cadeia. Por isso, as cidades continuarão a ser no futuro as sedes naturais de muitas das melhores e mais bem sucedidas iniciativas empresariais lucrativas e das não-lucrativas que geram as oportunidades das carreiras e das vidas profissionais e familiares, bem como das diferentes e novas formas de garantir a organização em rede das iniciativas que geram valor e diferenciação competitiva.

As cidades organizam hoje com cada vez maior capacidade autónoma os seus espaços naturais e alargam-se cada vez mais para além dos seus limites geográficos tradicionais. A gestão moderna das cidades vai complexificar-se e obrigar a contemplar um novo conceito para o seu planeamento e para os modos como estão capazes de atraírem novas actividades, actores e projectos.

A vida das cidades competentes e eficazes na sua capacidade de afirmação global e nacional tem de estar cada vez mais intensamente aberta às iniciativas que organizem recursos e factores económicos e tecnológicos competitivos a escalas globais, que possam ultrapassar as circunstâncias nacionais e locais e possam inserir-se nas cadeias mundiais de actividades e valor.

As cidades podem e devem, por isso mesmo, acompanhar as grandes tendências de evolução produtiva e científico-tecnológica, abrirem espaços de organização em rede abertos ao mundo para a geração e organização de novas empresas e projectos. Pois é óbvio que o espaço natural de intervenção das cidades principais de cada país passou a ser o Mundo, e sempre que justificado os espaços regionais integrados do ponto de vista económico e/ou político (como por exemplo a União Europeia).

Evidentemente que cada cidade tem o seu contexto nacional por excelência onde está integrada; e para além deste também pode e deve conhecer detalhadamente as circunstâncias e as potencialidades ou constrangimentos da sua inserção territorial “microgeográfica”. As cidades têm, assim, uma autonomia estratégica e de gestão político-económica, social e cultural que já se não compadece com as intervenções tradicionalmente centralizadoras do poder político e governamental.

Assim sendo, o poder central do Estado tem de passar a transferir ou devolver um conjunto de poderes e competências mais alargados para a esfera de intervenção autónoma das cidades. E estas organizarão especificamente essas esferas de intervenção, com base no mais detalhado conhecimento e análise das suas próprias realidades, perspectivando com recurso a prospectivas de largo prazo as respectivas estratégias de desenvolvimento.
Nesta nova organização dos poderes das cidades cabe sem margem para dúvidas a da definição da sua “estratégia de desenvolvimento desportivo”. E para a sua fundamentação não servem modelos já ultrapassados das eras de centralização do poder do Estado.

As cidades têm, nestas novas circunstâncias da sua inserção global e nacional, de conceber as suas intervenções e objectivos estratégicos para o desporto em função das suas análises territoriais, populacionais, de recursos humanos e naturais, das infra-estruturas existentes de onde partem, das suas capacidades de mobilização de lideranças para o desporto, das estruturas organizativas disponíveis e das necessárias, por exemplo. E na definição destas estratégias de desenvolvimento desportivo, as cidades têm de fazer participar todos os seus agentes próprios, desde dirigentes a atletas, pais e educadores, escolas, clubes desportivos e culturais, empresas e empresários, organizações sociais e de trabalhadores.

A estratégia de desenvolvimento desportivo das nossas cidades modernas e abertas à competitividade internacional tem de ser o resultado de um amplo processo de envolvimento e participação de actores interessados e envolvidos no e pelo desporto para poder ser trabalhada com a indispensável profundidade e poder ter a efectiva e atempada operacionalização. E neste amplo processo de participação tudo se pode ganhar: as pessoas, os praticantes ou atletas desportivos, as organizações desportivas, empresariais e patrocinadoras, as vontades e a ambição e os novos projectos.

No fim destes novos entendimentos do perspectivar do contributo estratégico das cidades na promoção de mais e melhor desporto, quem ganha é o desporto, a cidade, e o papel do desporto na cidade nova e no país em geral.




quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Sinais deste nosso tempo



É preciso que lutemos pela lei como pelas muralhas da cidade.

Heráclito, cerca de 544 – 484 a.C.

1. A mitologia grega proclama que os humanos se distinguem dos outros seres por cultivarem a terra, viverem do seu esforçado labor e por terem lei. Porém quando hoje olhamos em redor, esta marca é cada vez mais rara e difícil de encontrar. Em todo o canto e lugar proliferam os enzoneiros, espertalhões e vigaristas, oportunistas e trapaceiros. Movem-se como o peixe na água, driblam com todo o descaramento, tranquilidade e desfaçatez os normativos legais e a obrigação de ganhar o pão com o suor do rosto (um mandamento estipulado por Deus e registado na bíblia!).
Sobejam as mensagens, provas e revelações, trazidas por Hermes (igual e cumulativamente deus dos comerciantes, jornalistas e ladrões!), de que, pouco a pouco, se instala e expande impunemente uma conjuração para o crime de colarinho branco, organizado e praticado, de modo obsceno e insolente, sem quaisquer rebates de consciência ou receio de violar e enfrentar o quadro jurídico constitucionalmente instituído. Este vai ainda subsistindo no papel, mas assemelha-se progressivamente a um castiçal e ornamento ou a uma peça de museu; a sua observância e aplicação prática vão caindo em desuso ou então destinam-se quase exclusivamente às pessoas dotadas de apurada sensibilidade ética e moral, às que não têm notoriedade pública ou não dispõem de meios para contratar instrumentos, expedientes e agentes de ludíbrio e distorções das leis.
De resto o sistema judicial encarrega-se - não poucas vezes e salvo excepções que surpreendem pela crescente raridade - de lançar achas para fogueira da falta de transparência e da acusação de não ser isento e equitativo para todos, mas antes cego, surdo e mudo para os abusos e desmandos dos omnipotentes e mediáticos, ateando assim as já altas labaredas do descrédito e da desconfiança.

2. A máxima de Platão (“a verdade é a beleza no seu máximo esplendor”) vê-se substituída por estoutra: “a verdade oficial, oficiosa e pública é a mentira no seu máximo despudor”.
Com efeito a mentira instalou-se, tornou-se rotina compulsiva e vem constituindo a base, o fuste e o capitel do sistema político e social, apesar de a verdade continuar límpida e cristalina, estar bem à nossa frente e ser nítida à vista desarmada como o sol do meio-dia. No entanto parece inútil denunciar a primeira e afirmar a segunda. Até porque quem a isso se atreve é apontado a dedo como retrógrado (ou coisa pior) e gerador de problemas, é objecto de escárnio, de riso, insulto e maus-olhados; humilhado, desmoralizado e intimidado é coagido a encolher-se e recuar para o canto da comiseração, da depreciação e do desdém.
Como resultado desta evolução, a depressão e a resignação tomam conta de nós: indignar-se com o quê e denunciar para quê? Fazer o quê, a não ser assistir atónito ao estendal de imoralidade, fechar os olhos, sacudir os ombros, endurecer a consciência e cruzar os braços?
Em suma, ser honesto requer hoje uma grande ousadia e exige uma heroicidade acima dos mortais comuns e manifestamente fora de moda. Por este andar, não tarda nada a ser considerado anacronismo e um destrambelhamento próprio de lunáticos e doidos varridos, carecidos de internamento urgente.

3. A democracia desfigura-se e degenera; é cada vez mais uma miragem e já nem sequer virtual é, como se isso fosse o seu destino inexorável e não houvesse possibilidades para a reabilitar e aperfeiçoar. Sentimo-nos frustrados e impotentes e alijamos esta obrigação e responsabilidade, perante o paulatino alargamento do fosso entre os discursos e as intenções propaladas e as obras e constatações registadas. A veracidade dos factos não conta para nada; o que vale são as versões falsificadas da realidade, ardilosamente mistificadas, difundidas e impingidas.
O que foi que nos aconteceu?
Presenciamos e tomamos conhecimento de acontecimentos que nos aviltam, agridem, ofendem e envergonham e não reagimos. As tropelias e pulhices sucedem-se e não têm consequências, nem nós as exigimos. As evidências são mais que muitas, mas não são tidas em consideração, nem geram acções de indignação e protesto. É como se não nos incomodassem e molestassem ou tivéssemos a convicção da inutilidade de assumirmos os nossos deveres cívicos. Calamos e engolimos, como se nada fosse, até porque o olho da censura, mais ou menos velada, está sempre à espreita para nos meter medo e a vinda de represálias não se faz rogada.
Estamos sendo anestesiados de muitas e sofisticadas maneiras; o desinteresse apodera-se de nós e já nada nos choca, por mais escabroso que seja. É isto normal? É uma fatalidade nacional?
Como foi possível chegarmos a este patamar da mais densa escuridão cívica e moral? Como é que as nossas lideranças em tantos e tantos campos se deixaram enlear nesta teia? Que estômago é o nosso para conseguirmos suportar tanta gangrena e iniquidade?
Os intestinos do país e do sistema político que o rege decompõem-se e cheiram a podridão. A vergonha e o decoro ausentam-se para parte incerta. Os valores, os princípios e as noções do dever perderam o pio. A ética está sendo enterrada como um indigente: sem choro nem velas. E a um grande número de pessoas isto tanto se lhe dá como se lhe deu; apenas lhe interessam o bem-estar individual e o lema do salve-se quem puder. Às favas, malvas ou urtigas manda-se o bem colectivo e social e o imperativo de cuidar dele. O apagão da cidadania alastra a passos largos. O Estado omite-se, apaga-se e rende-se às corporações dos poderosos e incensados. As autoridades incumbidas de zelar pelo cumprimento e primado da Lei agem como se a sua função se tivesse invertido, contribuindo assim para a promoção da desmoralização.
Enfim, o país precisa, como de pão para a boca, de uma comprida e forte régua cívica e moral.

4. Todos os dias ficam conhecidas novas tramóias, são reveladas contas suspeitas no estrangeiro, vemos figurões impávidos e serenos a acumular fortuna pela calada da noite, nos labirintos das manhãs e no crepúsculo das tardes. Os nomes e os dados são divulgados, nada acontece; os canais de televisão e as páginas dos jornais abrem-se de par em par para que os nobres barões nos inundem com a negação do óbvio. Todos se dizem vítimas de cabalas, clamam por inocência e, por cima, ainda proferem ameaças. Sempre se acham inocentes ou vítimas do mundo, fazendo juras de inocência e vingança. De remorsos na alma e de vergonha na cara não se descortina o mais leve rasto.
Figuras graúdas da advocacia e reluzentes escritórios de advogados adquirem fortuna gigantesca, especializando-se em novos ramos do florescente negócio dos pareceres e servindo de umbrela aos famosos e endinheirados.
Vale tudo para desacreditar, denegrir, fragilizar, hostilizar, intimidar e transpor o espírito, a letra e o território da legalidade. O manancial de advertências, avisos e recados, intimidações e pressões, ‘influências’, ‘conselhos’ e ‘recomendações’ jorra donde menos seria de esperar, incorrendo - com todo o à-vontade e sem tirar nem pôr - no crime de corrupção sob a forma tentada.
A cada dia que passa decrescem os meios para desnudar a hipocrisia e a falácia de pessoas dotadas da arte e do poder de contar com agentes e máquinas de fabricação e propaganda de uma imagem de reputação acima de qualquer suspeita.

5. Quase tudo o que é delito grave é esquecido, arquivado, empacotado ou sujeito a delongas e remetido para as calendas gregas, acabando por prescrever. A Lei parece regulamentada para proteger a desmoralização. Jornalistas e formadores de opinião, ciosos da deontologia da função, ou são ‘dispensados’, saneados e vilipendiados ou sentem-se inúteis, pois a indignação tornou-se dispensável e supérflua. O que se pensa e diz não se escreve; e o que se escreve não usufrui de contexto favorável para se fincar, sustentar e medrar, enquanto a mentira vive num regabofe, engorda e sofre metamorfose.
Sempre que a verdade eclode e é escrita ou dita em público, os figurões visados reagem como felinos acossados e com um inimaginável arsenal de astúcias, máscaras e ardis.
Quando algum nome sonante cai na rede e é chamado à pedra por um juiz, este é rotulado de ‘exibicionista' e sedento de mediatismo. E corre o risco de ser malquisto e preterido nalguma avaliação e promoção.
Para cúmulo apregoa-se, alto e bom som, que vivemos num Estado de direito. Ah!, se ele fosse mesmo a sério, os diversos tipos de trafulhice e tramóia, de agitação e chantagem, de conluio e manobrismo, de jornalismo encomendado e de modo de ser ‘jornalista’ pombo-correio ou pau-mandado não disporiam do ar viciado que tanto gostam de respirar; não contariam com o descaso e os favores do deus da (in)justiça, nem lhes valeriam os embustes de Hermes para escapar ao banco da assunção de responsabilidades.

6. Mas… não haverá esperança de escapar a este plano inclinado para o abismo cívico e moral? Não é lícito cultivar o optimismo e, em nome dele e da necessidade de o possuir e proclamar, acreditar que a esta onda avassaladora de aldrabice, descaro, falsidade e hipocrisia se seguirá um mar extenso e regenerador da autenticidade e verdade?
A esperança, por si só, sem ser fecundada pela vontade e pelas acções e posições correspondentes, está longe de ser um amparo, um consolo, uma vantagem, um remédio ou bom presente para o desejado futuro. Ao invés, pode ser inclusive uma desgraça e uma tensão negativa, geradoras de demissão e indiferença, em face da gritante ausência de alternativa. Pode ser uma espera em vão e, assim, é continuar carente, é desejar o que não se tem e não se vê como alcançar, é prolongar o estado de insatisfação e infelicidade. Confiar apenas na esperança é, pois, equipará-la à fé ou religião. Ora, diz o velho Platão, a crença é o oposto do conhecimento.
Por outras palavras, a esperança constitui mais um mal do que um bem. Julgo que esta nuvem escura paira sobre a vida do nosso país, a ponto de não ser perceptível se ainda há alguma esperança. Com efeito é pertinente perguntar se é significativo o número dos que não se calam, entregam e rendem perante a avalanche de desvario que ameaça soterrar definitivamente o modo de vida estribado na tradição do trabalho sério e honrado. Ainda têm voz, capacidade e oportunidade de intervir no espaço público as pessoas amantes da ética e da decência e com vergonha na cara? Serão capazes de aguentar as campanhas de calúnia e desmoralização do mais sórdido e vil calibre?
7. Esta evocação, logo à saída das férias, não é de bom-tom; assume até todo o aspecto de uma contradição. Então as férias deixaram um sabor tão amargo e abriram portas a considerações formuladas com a tinta do azedume? Reconheço que a aspereza e o ar carregado e sisudo não são de bom augúrio nem a maneira mais recomendável para iniciar um novo ano de labutas, trabalhos e canseiras. Todavia há razões que arrastam o ânimo para um desvão pouco aconselhável nesta fase do campeonato.
Sucede que, nos últimos tempos, os sinais de mau funcionamento do fígado e da bílis são inequívocos: mau hálito, boca a saber a papel de música, preguiça intestinal, dificuldades em dormir, herpes e outras afecções cutâneas etc. Não dá para perceber de imediato as causas destas manifestações, tanto mais que me tenho preocupado em adoptar e seguir a preceito um estilo de vida sensato e saudável: exercício corporal quanto baste, abundância de saladas e frutas, corte no álcool e nos doces, ingestão frequente de líquidos, cultivo do convívio familiar, prática sexual ajustada à idade, leitura de livros de filosofia atinentes à condução de uma existência em harmonia com o cosmos, à formação de um pensamento ampliado, a uma visão alargada e compreensiva do mundo e dos seres que o povoam etc.
Como quer que seja, o mal-estar da bílis e do fígado não é de geração espontânea. Basta pensar um pouco para concluir que talvez tenha muito a ver com a leitura dos jornais e com o consumo acrescido da televisão e com o que isso avivou em mim.
Por um lado, não cessam as notícias de uma escabrosa actualidade feita de incêndios e incendiários, trafulhices e vigarices, cinzas e vítimas, aldrabões e vilões nos mais distintos sectores. (Para não meter a foice em seara alheia, convido o leitor a examinar o largo campo do ensino superior com todo o incessante cortejo de regimes jurídicos, regulamentos e demonstrações de nepotismo, tentando a todo o custo destruir a matriz da universidade e a paixão pela docência e impor transformações estatutárias e institucionais ao arrepio dos princípios e dimensões humanistas e iluministas da missão universitária. Quem é que ousou denunciar e questionar a insanidade dos centralizadores, burocratas e fanáticos da gestão que sobrepõem esta e os seus ditames à actividade-fim da Universidade e, deste jeito, a colocam em lugar cimeiro e a missão tradicional em lugar último? Quem é que reagiu, na altura própria e visando impedir os irreparáveis danos e estragos, à operação cosmética que envolveu o famigerado e fraudulento Processo de Bolonha, urdida para vender gato por lebre, tratando todo mundo como se fosse um bando de asnos e mentecaptos? Quem é que levantou a caneta e a voz contra os fervorosos paladinos e ilusionistas, contra o abastardamento do pensamento e o atentado a uma sólida formação de base ocasionados por essa medida dolosa da lucidez e sensatez? Como é que a razão foi torpedeada e tanta gente se deixou levar na enxurrada do populismo e da intrujice? Onde estavam as ordens profissionais, algumas finalmente tão despertas, enquanto a demência avançava? Agora é tarde e Inês é morta! Se os académicos e toda a multidão de entidades com obrigação de agir responsavelmente puseram na boca o adesivo da cobardia, se preferiram, por manifesto oportunismo ou demissionismo (do tipo: não me comprometas!), comportar-se como ingénuos, desatentos e distraídos e fazer ouvidos de mercador, se emudeceram, pactuaram e foram activa ou passivamente coniventes e cúmplices com a insidiosa lavagem ao cérebro da opinião pública, o que é que se pode esperar das outras pessoas?!)
Por outro lado, o pior do futebol está de volta e revigorado: à parte a confusão, o caos, a sujeira e chafurdice dos bastidores federativos e dos respectivos mandantes, intoxicadores, agitadores, subalternos, avençados, parceiros, filhos e enteados, os canais televisivos regurgitam de programas e painéis prenhes de regougadores peritos em açular o bando e acordar nele os mais arcaicos e agressivos instintos. O circo reabriu e vai ficar e durar, para que a ‘democracia’ vigente siga avante, impávida e triunfante. Enquanto o povo ignorante, apático, manipulado e alienado tudo engole; e o esclarecido abafa, em silencio e resignação, o seu sacrifício e dor.

8. Sei que este texto é enfadonho, repetitivo, recorrente, desnecessário e vão, porquanto não vai além do óbvio. Por isso as dúvidas e perguntas do leitor são legítimas. Será o escrito motivado por algum sentimento especial? Não morará no meu subconsciente algum despeito ou inveja? No capítulo pessoal não viso ninguém em particular. Desejo sempre que as entidades e pessoas colham frutos abundantes, multiplicados e céleres do que plantam ou semeiam, que nada demore ou falte aos méritos e virtudes da sua acção e comportamento. Mesmo assim não podia deixar de escrever estas linhas. Quanto mais não seja, para desagravar a consciência das minhas obrigações e para abrir as pesadas comportas da inquietude e do desassossego.
Todavia no plano superior e indeclinável do civismo o sentimento é de outro jaez, dado o funcionamento do nosso sistema judicial e dos actores políticos e sociais. A existência da vasta e intocável estirpe de trafulhas, tartufos e mentirosos está corroendo e dissolvendo a nossa estrutura e postura cívica, ética e moral. Está a contaminar-nos e, por via disso, tornar-nos falsos, hipócritas e cínicos nos pensamentos e nas palavras, nas congeminações e nos actos. A linguagem que circula e se impõe no quotidiano vai criando uma realidade condizente. Sem darmos por isso, tropeçamos nela a toda a hora, como quem dá topadas nas pedras do caminho e não presta grande atenção.
As palavras vão sendo esvaziadas de sentido. Está surgindo e ganhando foros de aceitação e validade um estranho e inquietante idioma, prenhe de um léxico assaz predatório e transformador. O vocabulário corrente serve para nos habituar e conformar a um novo modelo de indivíduo e a um novo ideal ‘educativo’: o dos sujeitos libertos de quaisquer desafios, entraves, freios, temores, inquietações e inibições civilizacionais e morais; abertos, flexíveis, disponíveis e competentes para a falcatrua, a farsa, a insinceridade, a incoerência, a ordinarice, o embuste, sem o mínimo indício de escrúpulos, de decoro e vergonha.
O aquém-homem surge na linha do horizonte, imponente e impante de arrogância, empáfia e vaidade, suscitando admiração, adulação, bajulação, aplauso e reconhecimento. A vida está para os arrivistas, espertos, oportunistas e sandeus. Eis a nova elite inspiradora da conduta dos demais. Eis o resultado e o marco altaneiros do avanço e progresso das reformas operadas nos nossos dias. Bem hajam os ídolos, donos e fabricantes deste tempo!
Quão grande é a falta de lideranças coexistíveis e confiáveis em tantos sectores! Como nos vamos reerguer destes escombros?

terça-feira, 7 de setembro de 2010

O estado da responsabilidade política

Na SIC Noticias, faz precisamente hoje uma semana, dois parlamentares “atiravam-se” à lei de controlo da dopagem.Com satisfação e com uma suposta autoridade política. Em causa a possibilidade de avocação, por parte da autoridade nacional antidopagem, da matéria disciplinar que está delegada nas federações desportivas. Um dos parlamentares já deteve responsabilidades como ministro responsável pela pasta do desporto.
O à vontade com que ambos contestaram a disposição contida na lei revela o estado de responsabilidade politica que grassa neste país. É que ambos tiveram a possibilidade de contestar, em sede do parlamento, os termos da disposição que agora discordam. E no diário das sessões nada consta a esse respeito. Mais. O partido de um dos parlamentares (PCP) absteve-se na votação final e o do outro (PSD) votou a favor. E se, no caso do parlamentar do PCP, pode ainda jogar a seu favor tratar-se de uma matéria que não é da sua especialidade politica e não ter prestado a atenção devida, no caso do parlamentar do PSD era, apenas, o titular da pasta do desporto do governo de Durão Barroso. De resto, convém referi-lo, por regra silencioso em qualquer discussão parlamentar sobre desporto, incluindo nas iniciativas legislativas, cujo objectivo foi o de aprovar diplomas alternativos aos que ele próprio defendeu e fez aprovar.
Mas a coisa não ficou por aqui. Não satisfeito, o ex-governante titular da pasta do desporto, censurou o apoio da administração pública desportiva (IDP) a um site de um jornal diário (Diário de Noticias) sobre doping. Que existe precisamente nos mesmíssimos moldes que, no seu governo, o secretário de estado que dele dependia ordenou para que se fizesse a um outro diário (Publico). A diferença está apenas no órgão de comunicação social escolhido. O que mudou?A opinião ou o contexto? Mudar de opinião é aceitável. Mas tem de haver uma explicação. Se não há justificação para a mudança de opinião só o contexto o explica: antes era governo; hoje oposição.
Este exemplo vale por mil explicações sobre o modo como se exercem competências públicas. E, repetimos, porque não é de mais enfatizá-lo, sobre o sentido de responsabilidade politica de quem as deteve em matéria de desporto. Este tipo de comportamento não é único. E esvazia qualquer esperança em que o futuro possa ser diferente. Uma desmoralização que não resulta tanto de se poder discordar desta ou daquela orientação. Deste ou outro modelo. Mas de uma completa ausência de qualquer escrúpulo ético e de sentido de responsabilidade. E sem responsabilidade não há confiança.
É a situação relatada um caso fortuito? Antes fosse. A gravidade da situação é que ela não atinge apenas os protagonistas em causa. Se fosse passávamos à frente. O bloco central de interesses legitima este estado de coisas. Podem mudar os governos. Podem mudar os ministros. Até podem ser de partidos diferentes O risco de, mais tarde, os ver, como agora, na SAD de um qualquer clube de futebol e a discutir no Dia Seguinte o modo como o árbitro se comportou, é muito elevado.Com o mesmo fanatismo de um qualquer adepto. Porventura com o jargão da política e com maneirismos de salão. Senhor doutor para a esquerda e vossa excelência para a direita. Mas com o mesmo comportamento incompatível para quem exerceu ou pensa exercer cargos de natureza pública. Ou então, é vê-los, quando a política é feita de cumplicidades que não de méritos, a assinar um vulgar livro branco do desporto, que, um qualquer amanuense, mestre de protagonismo, lhes preparou.

domingo, 5 de setembro de 2010

O grande desígnio nacional

Um novo texto de Luís Leite.
"O que é actualmente o meu país nos rankings desportivos (considera-se apenas o sector masculino e só as modalidades de maior expressão mundial) ?
Modalidades colectivas:

8º no ranking da FIFA (Futebol) ;
42º no ranking da VIVB (Voleibol) ;
49º no ranking da FIBA (Basquetebol) ;
Fora dos 47 primeiros do ranking da IHF (Andebol);
22º (em apenas 95 países membros) no ranking da IRB (Râguebi);

Modalidades individuais (não havendo ranking por países, situação calculada e aproximada):

Entre 20º e 40º na Vela e no Judo;
Entre 25º e 35º no Atletismo;
Fora dos 50 primeiros na Natação;

(Desconhecem-se ou é impossível determinar posições noutras modalidades)
É este o país, muito pouco relevante no Desporto no contexto Mundial ou Europeu, que decidiu colar-se à Espanha como forma de tentar conseguir aquele que é, claramente o grande desígnio nacional para as próximas décadas: a organização de uma Taça do Mundo de Futebol.
Para quê pensar em como é que vamos pagar a nossa monstruosa e impossível dívida externa?
Para quê pensar como e para quê se vai construir um TGV altamente ruinoso e sem viabilidade financeira?
Para quê pensar em pôr a Justiça a funcionar a tempo e horas?
Para quê pôr fim a ao facilitismo miserabilista na Educação?
Para quê investir a sério num desenvolvimento desportivo que nos tire da cauda da Europa em número de praticantes?

Temos que ser optimistas!
O povo quer é bola e quer bola cá dentro! E quer ver a bola nas bancadas e na TV!
O Euro 2004 deu mais de 1000 milhões de euros de prejuízo a Portugal e não teve qualquer resultado positivo no Turismo nesse ano? Não interessa! Ficámos com os Estádios.
Qual a previsão de custos deste fantástico evento? Não interessa!
Portugal precisa de se mostrar ao mundo com a sua fantástica capacidade organizativa!
Venha, pois o Mundial de 2018 (se por acaso ainda existirmos como país independente)."

sábado, 4 de setembro de 2010

Seguir a corrente ou navegar à bolina?


A utilização indiscriminada e avulsa do adjectivo “desportivo” generalizou um termo com uma amplitude polissémica cada vez mais lata. Hoje assistem-se a manifestações cuja pressurosa catalogação, pelos ditames do marketing comunicacional, de “desportivas” ou “culturais” seriam impensáveis há bem pouco tempo atrás. Sinais dos tempos? Expressão das dinâmicas de uma sociedade global e pós-moderna? Banalização de conceitos? Estas inquietações e questões não se projectam apenas na esfera da construção de um quadro conceptual de análise da realidade social por quem se dedica a investigar o desporto, mas são determinantes na estrutura de valores que compõem o acervo civilizacional que é o desporto.

O desporto reproduz, difunde, preserva e transmite, como qualquer outro fenómeno social e cultural, os seus valores. Aprofundar como se desenvolve este processo é um elemento decisivo quando se pretende clarificar uma estratégia de desenvolvimento social através do desporto. Poder-se-à considerar, em ultima instância, que são os públicos/destinatários que determinam os valores vigentes em qualquer domínio cultural e estético, onde o desporto não é excepção, e assim se retirarem responsabilidades políticas desta equação. Poder-se-à, em sentido contrário, considerar que os públicos se educam.

Num contexto onde a cultura de massas contaminou os modos de vida das populações por um entretenimento de satisfação imediata, prático, ligeiro e com o maior showbizz possível, baixando significativamente os patamares de exigência dos públicos do desporto - na condição de praticantes, mas principalmente de espectadores e consumidores - na justa medida em que se foram alargando e aumentando a sua iliteracia desportiva, é decisivo para quem assume funções de direcção técnica ou de decisão política saber claramente quais os valores a preservar. Quais os percursos de desenvolvimento desportivo a trilhar através dos instrumentos que dispõem (financiamento, regulação, mobilização política, etc)?

O desporto, como outros, é um bem de mérito, ou seja, a comunidade beneficia do valor intrínseco que este gera em cada cidadão, pelo que se justifica que a colectividade (Governo/Autarquias) apoie aquilo que todos beneficiam e não se esgota apenas no indivíduo. São iniludíveis as competências públicas na salvaguarda e desenvolvimento deste bem.

Porém, ao colmatar as disfuncionalidades do mercado que naturalmente replica o contexto social dominante em que se insere, onde sobre a proteiforme definição de desporto cabe tudo - desde o apoio ao movimento associativo tradicional, à programação de uma rede de infra-estruturas desportivas de base ou instalações destinadas ao espectáculo, passando pelos programas de activismo físico em 30 minutos, até aos mega-eventos e produções desportivas, da animação desportiva em praias, áreas naturais ou espaços públicos, dos torneios e competições internacionais até às práticas recreativas de bairro - cumpre à gestão pública, seja ela central ou local, identificar quais destes e de muitos outros elementos têm um valor desportivo intrínseco, e como tal susceptíveis de subvenção pública, daqueles cujo desporto é apenas um mero componente instrumental para se atingir outros objectivos, por certo legítimos, mas estranhos ao desenvolvimento desportivo. É isso que se exige a quem administra fundos públicos, com maior premência em sectores de actividade onde o seu peso é decisivo.

Há que saber transmitir à comunidade e aos agentes desportivos estas diferenças entre o que é essencial e o que é despiciendo para a construção sustentada de uma estratégia de desenvolvimento desportivo. E esse é um caminho que inevitavelmente se ancora em valores que por vezes colidem com os timings do processo político, pelo que raramente a mensagem é passada de forma cristalina à sociedade, com o que isso gera em depredação de dinheiros públicos e desintegração do tecido desportivo.

Aprendemos que as políticas medem-se pelos resultados e não pelas intenções. Medem-se pelo valor criado a partir do que se investe e não apenas pelo montante das verbas que se despendem. Medem-se pelo número e fidelização de praticantes e pela qualidade dos resultados alcançados e não apenas pelas eventuais oportunidades que se constroem para que isso aconteça. Mede-se também pela forma como se nobilita o espaço público desportivo e se credibilizam as suas instituições.

Mas que valores importa então suportar, preservar e desenvolver quando a comunidade, ela própria, se revê numa cultura desportiva de massas e alimenta as suas formas de expressão desportiva? Seguir a corrente ou navegar à bolina?


sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Os Doutores do Governo no Futebol

Publica-se um texto que nos foi enviado por José Pinto Correia e que se agradece.
A Colectividade Desportiva tem recebido, em número crescente, contributos exteriores aos seus «associados», situação que muito nos agrada.
Por essa razão, a solução técnica encontrada é um dos associados tornar públicos textos que não são da sua autoria.
Nada de errado neste procedimento.
Todavia, aqui e acolá, não se concorda, nem que seja na generalidade, com o teor desses textos.
É hoje o caso.
Fala mais alto, no entanto, o valor da liberdade de expressão.

"A decisão da ADoP, assinada pelo Professor Doutor Luís Sardinha, hoje finalmente conhecida e que condena o seleccionador nacional a uma pena atenuada de seis meses de suspensão é uma obra magnífica e um monumento clarificador do chamado poder de Estado. Ali se defendem desde a pureza virginal da mãe do Presidente da ADoP, até aos indefesos e aristocráticos caracteres dos digníssimos membros das brigadas anti-dopagem. Para o IDP e o Governo que elabora tal decisão nada pode tocar ou melindrar tanto a santa mãe de Sua excelência o Doutor Luís Horta como também a santíssima paz de espírito e sossego transcendental dos senhores médicos que colhem os líquidos e avaliam escrupulosamente os devidos parâmetros.
Mal, muitíssimo mal mesmo andou aquele indigno treinador, qual membro loquaz de uma ralé reles e desbocada, que usou impropérios e outras manobras vis, muitíssimo impróprias do santuário que é não apenas o futebol profissional português como o templo sacrossanto e as redomas de cristal em que vivem as brigadas doutorais da Autoridade e que dão lustro aos seus também muitíssimo dignos e puritanos dirigentes, o Presidente do IDP e o Secretário de Estado deste “nosso mui luminoso e celestial Governo”.
Tem Sua Senhoria Doutoral, o Professor Luís Sardinha, um especialíssimo cuidado em preservar o bom nome e a dignidade intocável dos homens (não se sabe se também há mulheres na ADoP), alegando e ajuizando contra qualquer palavra mal dita sobre eles e seus mais estimados familiares, ou mesmo contra qualquer incidência que possa minimamente perturbar o seu protocoladíssimo trabalho e tarefas. E para tal julgam o IDP, através da ADoP, e directamente também o Governo e o Senhor Secretário de Estado do Desporto que tutela o Instituto e a ADoP, o seleccionador nacional de futebol a uma pena diferente e seis vezes superior aquela que a justiça desportiva autónoma tinha estabelecido.
E ainda se permite o Doutor Luís Sardinha, insigne catedrático de exercício e saúde de uma instituição de ensino universitário pública, a voluntariosa liberdade de fazer comentários desabonatórios sobre o acórdão proferido pelo órgão jurisdicional eleito da própria Federação Portuguesa de Futebol.
O IDP, e Professor Luís Sardinha, vem agora julgar em causa própria de um organismo que dele faz parte, a ADoP, e o Governo vem também directamente e ainda mais inusitadamente sobrepor a sua “justiça” à da autónoma FPF.
Para além de toda a cândida argumentação e do virtuoso registo de puritanismo do acórdão do IDP, que certamente deve ser nos seus átrios e corredores um templo sacratíssimo de pureza e rectidão, o Governo vem interferir decisivamente na autonomia jurisdicional da FPF e do desporto, ao sobrepor uma sua avaliação jurídica aquela que tinha sido independentemente fixada pela justiça desportiva.
O Tribunal Arbitral do Desporto em Lausanne e a FIFA, por seu intermédio e talvez não apenas (o que se verá lá mais adiante), certamente terão subsequentemente a palavra sobre esta imparidade portuguesa, tanto mais que a fundamentação em casos antecedentes por jurisprudência no próprio acórdão do IDP é inexistente (como consta em discurso directo dos próprios termos da deliberação proferida).
Claro também é que toda esta trama político-jurídica da esfera governamental, aliada à habitualíssima incapacidade, incompetência, indecisão, e o apego aos lugares de praticamente toda esta Direcção da FPF, que lembremos vive no limbo jurídico por desconformidade estatutária há muitos meses, dá a este “Caso Queirós” um cheiro imenso a processo Kafkiano e ao Orwelliano “1984”. Lembraremos que neste último sistema político e governativo passou a imperar uma linguagem nova e asséptica, a “Novilíngua” onde inúmeras palavras antigas eram apagadas ou proscritas, e uma “Polícia do Pensamento” capaz não apenas de evitar a divergência e a dissidência tanto no pensar como na própria linguagem, como também de condenar os homens que pudessem ter um qualquer desses desvios, sobretudo quando estivessem dispostos a aceitar a sua responsabilidade individual pela desconformidade e o destempero. Portugal está pois, com esta magnífica peça acusatória do IDP e do Governo ao treinador Carlos Queirós no mundo das virgens e dos “juízes do tudo e do nada”, com um poder governamental que já nem faz questão ou cerimónia em invadir esferas autónomas e independentes do desporto para dar a cumprir a razão de Estado.
Queirós é nesta “ópera bufa” apenas um pequeno vulto destinado a expiar os pecados de lesa majestades que impropriamente cometeu.
Honra pois aos máximos virtuosos, excelsos e vigilantes Doutores da Secretaria de Estado do Desporto, do IDP, da ADoP, e especialmente à virgem mãe do Doutor Luís Horta que ficará nos anais do desporto português e nos do Tribunal Arbitral do Desporto (e na FIFA, portanto)".

José Pinto Correia, Mestre em Gestão do Desporto

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A miopia desportiva e o facilitismo da acusação!

O texto que segue é da autoria de Fernando Gaspar cuja colaboração se agradece.

Acusações de defeitos ao Sistema Desportivo Português:
• De falta disto;
• De falta daquilo;
• De corrupção;
• De inoperância;
• De abuso de poder;
• De falta de poder;
• De falta de estratégia.

São acusações diárias que se podem ler nos mais diversos meios de difusão de informação, ou desinformação. Nomeadamente, em relação a esta ultima acusação, pergunto duas coisas:
1. Quantos desses acusadores terão uma estratégia para a sua própria realidade e dimensão?
2. Quantos esperam por uma receita que resolva todos os problemas, qual D. Sebastião que um dia emergirá do nevoeiro?

Inclusivamente, será fácil apontar o dedo aos governos dizendo que os mesmos não apresentam qualquer estratégia a médio/logo prazo para o desporto, que os seus programas não são exequíveis, que os apoios são insuficientes, etc, etc, etc… Até poderá, tudo isso, ser verdade, mas infelizmente esta falta de estratégia não se aplica única e exclusivamente à esfera política da dimensão desportiva.

Mas tudo deverá ter a sua dimensão e como tal enquadrar-se dentro de um determinado universo ajustado a essa mesma dimensão. E é aqui que entra, ou melhor: não entra, a estratégia, a planificação, a orientação e o estabelecimento e avaliação de objectivos.

Quantos, pequenos clubes de bairro ou de pequenas localidades, têm um plano estratégico a cinco ou dez anos? Ou até mesmo a dois anos? Já para não falar de planos por Ciclos Olímpicos. Poderão eventualmente ter um plano de actividades, o que por si só não chega para delinear um plano estratégico.

Que esta planificação não se entenda apenas por resultados desportivos, mas também por um outro conjunto de objectivos válidos, tais como: consolidação orçamental, independência orçamental, reforço de imagem, identificação com a comunidade local, educação e formação para a área da actividade física, desporto e saúde, etc… Quantos clubes então estabelecem planos estratégicos para estas ou outras áreas? Quantos analisam as tendências, os seus pontos fortes e fracos, as suas necessidades e definem estratégias para alcançar os seus objectivos a médio/longo prazo. A visão da grande maioria, certamente não alcançará mais do que um ou dois anos de prazo.

Frequentemente a comunicação social, dá notícias de sonhos de dirigentes de pequenos clubes, de clubes com alguma dimensão e até mesmo de algumas associações e federações, que gostariam, de alcançar determinado resultado desportivo, de ingressar em determinada competição, entre outros sonhos (sim, sonhos! Porque entendo que se devem diferenciar os objectivos dos sonhos – embora os sonhos possam orientar os objectivos e estes concretizar os primeiros). Mas depois, o resto dessa mesma notícia mostra o quão vazio de conteúdo é o sonho, da não existência de estratégia, de objectivos intermédios e finais e de métodos para alcançar esse sonho, preferindo apontar o dedo às decisões políticas, à crise, à falta de qualidade dos atletas, à falta de patrocínios, ou a outro qualquer factor externo à sua organização. Então e porque não apontar o dedo à sua própria organização?

Um projecto será tão mais exequível, quanto mais independente de factores externos for. Há que criar estratégias para contornar os factores externos que dificultam o processo. Um patrocínio cada vez menos cai do céu por acaso (mesmo no clube de bairro), há que criar condições para dar algo em troca; a qualidade dos atletas (objectivos competitivos) em grande parte das modalidades não se faz apenas com treinadores curiosos, ou com treinos de uma hora duas vezes por semana e por ai fora…


Da mesma forma que não se faz um atleta olímpico de um ano para o outro, mesmo que se tenham conseguido reunir todas as condições; não se conseguem patrocínios de um momento para o outro, mesmo tendo mudado significativamente a estratégia de comunicação. É preciso uma estratégia a longo prazo, que consolide uma postura e uma visão. Um objectivo deverá ser uma visão de uma organização, deverá ser exequível (e como tal resumir em sim mesmo todo um processo necessário para esta execução) e balizar um caminho.

Reclama-se tudo isto, mas tenho duvidas que se por momentos fossem dadas essas condições a quem as reclama, houvesse uma estratégia capaz de conduzir aos seus sonhos (repare-se que frisei sonhos e não objectivos).

“O Homem é mais empurrado por trás que puxado pela frente!” É uma frase icónica dos corredores da FMH, no entanto parece que continua a não ser colocada em prática.
O Homem – Dirigente Desportivo, continua à espera de factores que o puxem pela frente, que lhe facilitem o caminho, de receitas fáceis e rápidas, que lhe tragam a glória sem esforço, ao invés de procurar no seu caminho parceiros, estratégias e aprendizagens que lhe permitam direccionar o seu comportamento para um visão coerente e objectiva do futuro.

Estratégia, precisa-se!

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O legalês

A necessidade de solicitar uma licença a um serviço público obrigou-me a deslocar à sede em Lisboa. O ofício que me convocava, para um acto de mera rotina administrativa, referia 8 diplomas legais entre leis e portarias. Centenas de ofícios semelhantes serão escritas anualmente para o mesmo fim. E há anos que assim ocorre. Imagino que ninguém com responsabilidades públicas sobre a matéria se interrogou sobre se que aquilo é a forma de se comunicar com os cidadãos. Sobre se é possível saber o que estão a dizer quando, em vez de dizer o que precisa de ser dito, remetem para o número, do artigo, da lei, publicada numa determinada data. Para o caso em que não foi alterada. Porque se o foi a lenga-lenga repete-se. Não é apenas o universo burocrático em que tudo está envolvido. É o próprio registo narrativo que é inacessível ao comum dos mortais.
Na administração pública de muitos países há, actualmente, uma luta contra o legalês e o jargão jurídico. E a favor de uma linguagem clara, simples e compreensível quer nos documentos oficiais, quer no modo como a administração comunica com os utentes. Naturalmente que se não trata de fazer baixar a norma jurídica à linguagem comum. Mas de perceber que quando se comunica se tem de levar em consideração que os destinatários não são juristas.
Construir uma cultura organizacional na administração pública que privilegie aqueles a quem se dirige, que valorize a linguagem simples e clara é uma tarefa difícil e demorada. Difícil porque poucos compreendem que é necessário deixar de olhar parar os textos oficiais como escrituras sagradas, só compreensíveis aos entendidos. Demorada porque são anos e anos de uma cultura que ignora os destinatários da acção pública.
No nosso país, infelizmente, os exemplos abundam. O código dos contratos públicos (CCP), um instrumento basilar da acção dos serviços do Estado, é um documento que serve para ganhar dinheiro ao escritório de advogados que o preparou. E aos colegas que têm de litigar as dezenas de providências cautelares que correm nos tribunais. Algumas das suas normas só são estendíveis, se é que o são, a quem as escreveu. A consulta custa uma nota. A complexidade é tanta que os próprios juristas não se entendem. Imagine-se o que é o técnico de serviço público que não é jurista - o que se passa com a maioria - a trabalhar com o referido código. No fim-de-semana correu a notícia da obrigatoriedade de utilizar os serviços da net para fazer prova de condições para a obtenção do rendimento mínimo. Espera-se, naturalmente, que quem assim dispôs corra a corrigir a asneira. A generalidade dos clubes desportivos não têm condições operacionais para poderem entender e responder às obrigações decorrentes do regime de comparticipações públicas. O ónus administrativo sobre os serviços públicos é brutal. Aguarda-se que o bom senso regresse e o diploma seja revisto.
Curiosamente tudo isto ocorre num país que tem adoptado medidas correctas de simplificação administrativa e tem soluções de boas práticas de serviço público de que as mais emblemáticas serão, porventura, as Lojas do Cidadão.
O actual governo manifestou a intenção de “limpar” uma série de diplomas legais que mantendo-se em vigores estão desactualizados, desajustados, não são aplicados ou todas elas em simultâneo. Uma espécie de arrumação no edifício legislativo nacional tão propenso à jurisdicização de tudo e mais alguma coisa. Ignoro se essa diligência cobre alguma da prolixa legislação desportiva. Mas esse problema não resolve o que inicialmente referimos.
Recentemente recebemos um documento onde se referia que a Suécia adoptou uma política de linguagem oficial para o sector público. No ministério da Justiça sueco trabalham cinco linguistas e cinco advogados na revisão de toda a legislação de modo a garantir uma elevada qualidade jurídica a par de uma linguagem tão clara e acessível quanto possível.
Cada um de nós, cidadão comum ou trabalhando com os serviços públicos, já sentiu os efeitos de uma cultura legislativa convencida, soberba e que paira acima das pessoas. O que está mal. Porque ao fim ao resto toda a produção legislativa se destina a regular a vida em sociedade. Que é a vida de cada um de nós.