É preciso que lutemos pela lei como pelas muralhas da cidade.
Heráclito, cerca de 544 – 484 a.C.
1. A mitologia grega proclama que os humanos se distinguem dos outros seres por cultivarem a terra, viverem do seu esforçado labor e por terem lei. Porém quando hoje olhamos em redor, esta marca é cada vez mais rara e difícil de encontrar. Em todo o canto e lugar proliferam os enzoneiros, espertalhões e vigaristas, oportunistas e trapaceiros. Movem-se como o peixe na água, driblam com todo o descaramento, tranquilidade e desfaçatez os normativos legais e a obrigação de ganhar o pão com o suor do rosto (um mandamento estipulado por Deus e registado na bíblia!).
Sobejam as mensagens, provas e revelações, trazidas por Hermes (igual e cumulativamente deus dos comerciantes, jornalistas e ladrões!), de que, pouco a pouco, se instala e expande impunemente uma conjuração para o crime de colarinho branco, organizado e praticado, de modo obsceno e insolente, sem quaisquer rebates de consciência ou receio de violar e enfrentar o quadro jurídico constitucionalmente instituído. Este vai ainda subsistindo no papel, mas assemelha-se progressivamente a um castiçal e ornamento ou a uma peça de museu; a sua observância e aplicação prática vão caindo em desuso ou então destinam-se quase exclusivamente às pessoas dotadas de apurada sensibilidade ética e moral, às que não têm notoriedade pública ou não dispõem de meios para contratar instrumentos, expedientes e agentes de ludíbrio e distorções das leis.
De resto o sistema judicial encarrega-se - não poucas vezes e salvo excepções que surpreendem pela crescente raridade - de lançar achas para fogueira da falta de transparência e da acusação de não ser isento e equitativo para todos, mas antes cego, surdo e mudo para os abusos e desmandos dos omnipotentes e mediáticos, ateando assim as já altas labaredas do descrédito e da desconfiança.
2. A máxima de Platão (“a verdade é a beleza no seu máximo esplendor”) vê-se substituída por estoutra: “a verdade oficial, oficiosa e pública é a mentira no seu máximo despudor”.
Com efeito a mentira instalou-se, tornou-se rotina compulsiva e vem constituindo a base, o fuste e o capitel do sistema político e social, apesar de a verdade continuar límpida e cristalina, estar bem à nossa frente e ser nítida à vista desarmada como o sol do meio-dia. No entanto parece inútil denunciar a primeira e afirmar a segunda. Até porque quem a isso se atreve é apontado a dedo como retrógrado (ou coisa pior) e gerador de problemas, é objecto de escárnio, de riso, insulto e maus-olhados; humilhado, desmoralizado e intimidado é coagido a encolher-se e recuar para o canto da comiseração, da depreciação e do desdém.
Como resultado desta evolução, a depressão e a resignação tomam conta de nós: indignar-se com o quê e denunciar para quê? Fazer o quê, a não ser assistir atónito ao estendal de imoralidade, fechar os olhos, sacudir os ombros, endurecer a consciência e cruzar os braços?
Em suma, ser honesto requer hoje uma grande ousadia e exige uma heroicidade acima dos mortais comuns e manifestamente fora de moda. Por este andar, não tarda nada a ser considerado anacronismo e um destrambelhamento próprio de lunáticos e doidos varridos, carecidos de internamento urgente.
3. A democracia desfigura-se e degenera; é cada vez mais uma miragem e já nem sequer virtual é, como se isso fosse o seu destino inexorável e não houvesse possibilidades para a reabilitar e aperfeiçoar. Sentimo-nos frustrados e impotentes e alijamos esta obrigação e responsabilidade, perante o paulatino alargamento do fosso entre os discursos e as intenções propaladas e as obras e constatações registadas. A veracidade dos factos não conta para nada; o que vale são as versões falsificadas da realidade, ardilosamente mistificadas, difundidas e impingidas.
O que foi que nos aconteceu?
Presenciamos e tomamos conhecimento de acontecimentos que nos aviltam, agridem, ofendem e envergonham e não reagimos. As tropelias e pulhices sucedem-se e não têm consequências, nem nós as exigimos. As evidências são mais que muitas, mas não são tidas em consideração, nem geram acções de indignação e protesto. É como se não nos incomodassem e molestassem ou tivéssemos a convicção da inutilidade de assumirmos os nossos deveres cívicos. Calamos e engolimos, como se nada fosse, até porque o olho da censura, mais ou menos velada, está sempre à espreita para nos meter medo e a vinda de represálias não se faz rogada.
Estamos sendo anestesiados de muitas e sofisticadas maneiras; o desinteresse apodera-se de nós e já nada nos choca, por mais escabroso que seja. É isto normal? É uma fatalidade nacional?
Como foi possível chegarmos a este patamar da mais densa escuridão cívica e moral? Como é que as nossas lideranças em tantos e tantos campos se deixaram enlear nesta teia? Que estômago é o nosso para conseguirmos suportar tanta gangrena e iniquidade?
Os intestinos do país e do sistema político que o rege decompõem-se e cheiram a podridão. A vergonha e o decoro ausentam-se para parte incerta. Os valores, os princípios e as noções do dever perderam o pio. A ética está sendo enterrada como um indigente: sem choro nem velas. E a um grande número de pessoas isto tanto se lhe dá como se lhe deu; apenas lhe interessam o bem-estar individual e o lema do salve-se quem puder. Às favas, malvas ou urtigas manda-se o bem colectivo e social e o imperativo de cuidar dele. O apagão da cidadania alastra a passos largos. O Estado omite-se, apaga-se e rende-se às corporações dos poderosos e incensados. As autoridades incumbidas de zelar pelo cumprimento e primado da Lei agem como se a sua função se tivesse invertido, contribuindo assim para a promoção da desmoralização.
Enfim, o país precisa, como de pão para a boca, de uma comprida e forte régua cívica e moral.
4. Todos os dias ficam conhecidas novas tramóias, são reveladas contas suspeitas no estrangeiro, vemos figurões impávidos e serenos a acumular fortuna pela calada da noite, nos labirintos das manhãs e no crepúsculo das tardes. Os nomes e os dados são divulgados, nada acontece; os canais de televisão e as páginas dos jornais abrem-se de par em par para que os nobres barões nos inundem com a negação do óbvio. Todos se dizem vítimas de cabalas, clamam por inocência e, por cima, ainda proferem ameaças. Sempre se acham inocentes ou vítimas do mundo, fazendo juras de inocência e vingança. De remorsos na alma e de vergonha na cara não se descortina o mais leve rasto.
Figuras graúdas da advocacia e reluzentes escritórios de advogados adquirem fortuna gigantesca, especializando-se em novos ramos do florescente negócio dos pareceres e servindo de umbrela aos famosos e endinheirados.
Vale tudo para desacreditar, denegrir, fragilizar, hostilizar, intimidar e transpor o espírito, a letra e o território da legalidade. O manancial de advertências, avisos e recados, intimidações e pressões, ‘influências’, ‘conselhos’ e ‘recomendações’ jorra donde menos seria de esperar, incorrendo - com todo o à-vontade e sem tirar nem pôr - no crime de corrupção sob a forma tentada.
A cada dia que passa decrescem os meios para desnudar a hipocrisia e a falácia de pessoas dotadas da arte e do poder de contar com agentes e máquinas de fabricação e propaganda de uma imagem de reputação acima de qualquer suspeita.
5. Quase tudo o que é delito grave é esquecido, arquivado, empacotado ou sujeito a delongas e remetido para as calendas gregas, acabando por prescrever. A Lei parece regulamentada para proteger a desmoralização. Jornalistas e formadores de opinião, ciosos da deontologia da função, ou são ‘dispensados’, saneados e vilipendiados ou sentem-se inúteis, pois a indignação tornou-se dispensável e supérflua. O que se pensa e diz não se escreve; e o que se escreve não usufrui de contexto favorável para se fincar, sustentar e medrar, enquanto a mentira vive num regabofe, engorda e sofre metamorfose.
Sempre que a verdade eclode e é escrita ou dita em público, os figurões visados reagem como felinos acossados e com um inimaginável arsenal de astúcias, máscaras e ardis.
Quando algum nome sonante cai na rede e é chamado à pedra por um juiz, este é rotulado de ‘exibicionista' e sedento de mediatismo. E corre o risco de ser malquisto e preterido nalguma avaliação e promoção.
Para cúmulo apregoa-se, alto e bom som, que vivemos num Estado de direito. Ah!, se ele fosse mesmo a sério, os diversos tipos de trafulhice e tramóia, de agitação e chantagem, de conluio e manobrismo, de jornalismo encomendado e de modo de ser ‘jornalista’ pombo-correio ou pau-mandado não disporiam do ar viciado que tanto gostam de respirar; não contariam com o descaso e os favores do deus da (in)justiça, nem lhes valeriam os embustes de Hermes para escapar ao banco da assunção de responsabilidades.
6. Mas… não haverá esperança de escapar a este plano inclinado para o abismo cívico e moral? Não é lícito cultivar o optimismo e, em nome dele e da necessidade de o possuir e proclamar, acreditar que a esta onda avassaladora de aldrabice, descaro, falsidade e hipocrisia se seguirá um mar extenso e regenerador da autenticidade e verdade?
A esperança, por si só, sem ser fecundada pela vontade e pelas acções e posições correspondentes, está longe de ser um amparo, um consolo, uma vantagem, um remédio ou bom presente para o desejado futuro. Ao invés, pode ser inclusive uma desgraça e uma tensão negativa, geradoras de demissão e indiferença, em face da gritante ausência de alternativa. Pode ser uma espera em vão e, assim, é continuar carente, é desejar o que não se tem e não se vê como alcançar, é prolongar o estado de insatisfação e infelicidade. Confiar apenas na esperança é, pois, equipará-la à fé ou religião. Ora, diz o velho Platão, a crença é o oposto do conhecimento.
Por outras palavras, a esperança constitui mais um mal do que um bem. Julgo que esta nuvem escura paira sobre a vida do nosso país, a ponto de não ser perceptível se ainda há alguma esperança. Com efeito é pertinente perguntar se é significativo o número dos que não se calam, entregam e rendem perante a avalanche de desvario que ameaça soterrar definitivamente o modo de vida estribado na tradição do trabalho sério e honrado. Ainda têm voz, capacidade e oportunidade de intervir no espaço público as pessoas amantes da ética e da decência e com vergonha na cara? Serão capazes de aguentar as campanhas de calúnia e desmoralização do mais sórdido e vil calibre?
7. Esta evocação, logo à saída das férias, não é de bom-tom; assume até todo o aspecto de uma contradição. Então as férias deixaram um sabor tão amargo e abriram portas a considerações formuladas com a tinta do azedume? Reconheço que a aspereza e o ar carregado e sisudo não são de bom augúrio nem a maneira mais recomendável para iniciar um novo ano de labutas, trabalhos e canseiras. Todavia há razões que arrastam o ânimo para um desvão pouco aconselhável nesta fase do campeonato.
Sucede que, nos últimos tempos, os sinais de mau funcionamento do fígado e da bílis são inequívocos: mau hálito, boca a saber a papel de música, preguiça intestinal, dificuldades em dormir, herpes e outras afecções cutâneas etc. Não dá para perceber de imediato as causas destas manifestações, tanto mais que me tenho preocupado em adoptar e seguir a preceito um estilo de vida sensato e saudável: exercício corporal quanto baste, abundância de saladas e frutas, corte no álcool e nos doces, ingestão frequente de líquidos, cultivo do convívio familiar, prática sexual ajustada à idade, leitura de livros de filosofia atinentes à condução de uma existência em harmonia com o cosmos, à formação de um pensamento ampliado, a uma visão alargada e compreensiva do mundo e dos seres que o povoam etc.
Como quer que seja, o mal-estar da bílis e do fígado não é de geração espontânea. Basta pensar um pouco para concluir que talvez tenha muito a ver com a leitura dos jornais e com o consumo acrescido da televisão e com o que isso avivou em mim.
Por um lado, não cessam as notícias de uma escabrosa actualidade feita de incêndios e incendiários, trafulhices e vigarices, cinzas e vítimas, aldrabões e vilões nos mais distintos sectores. (Para não meter a foice em seara alheia, convido o leitor a examinar o largo campo do ensino superior com todo o incessante cortejo de regimes jurídicos, regulamentos e demonstrações de nepotismo, tentando a todo o custo destruir a matriz da universidade e a paixão pela docência e impor transformações estatutárias e institucionais ao arrepio dos princípios e dimensões humanistas e iluministas da missão universitária. Quem é que ousou denunciar e questionar a insanidade dos centralizadores, burocratas e fanáticos da gestão que sobrepõem esta e os seus ditames à actividade-fim da Universidade e, deste jeito, a colocam em lugar cimeiro e a missão tradicional em lugar último? Quem é que reagiu, na altura própria e visando impedir os irreparáveis danos e estragos, à operação cosmética que envolveu o famigerado e fraudulento Processo de Bolonha, urdida para vender gato por lebre, tratando todo mundo como se fosse um bando de asnos e mentecaptos? Quem é que levantou a caneta e a voz contra os fervorosos paladinos e ilusionistas, contra o abastardamento do pensamento e o atentado a uma sólida formação de base ocasionados por essa medida dolosa da lucidez e sensatez? Como é que a razão foi torpedeada e tanta gente se deixou levar na enxurrada do populismo e da intrujice? Onde estavam as ordens profissionais, algumas finalmente tão despertas, enquanto a demência avançava? Agora é tarde e Inês é morta! Se os académicos e toda a multidão de entidades com obrigação de agir responsavelmente puseram na boca o adesivo da cobardia, se preferiram, por manifesto oportunismo ou demissionismo (do tipo: não me comprometas!), comportar-se como ingénuos, desatentos e distraídos e fazer ouvidos de mercador, se emudeceram, pactuaram e foram activa ou passivamente coniventes e cúmplices com a insidiosa lavagem ao cérebro da opinião pública, o que é que se pode esperar das outras pessoas?!)
Por outro lado, o pior do futebol está de volta e revigorado: à parte a confusão, o caos, a sujeira e chafurdice dos bastidores federativos e dos respectivos mandantes, intoxicadores, agitadores, subalternos, avençados, parceiros, filhos e enteados, os canais televisivos regurgitam de programas e painéis prenhes de regougadores peritos em açular o bando e acordar nele os mais arcaicos e agressivos instintos. O circo reabriu e vai ficar e durar, para que a ‘democracia’ vigente siga avante, impávida e triunfante. Enquanto o povo ignorante, apático, manipulado e alienado tudo engole; e o esclarecido abafa, em silencio e resignação, o seu sacrifício e dor.
8. Sei que este texto é enfadonho, repetitivo, recorrente, desnecessário e vão, porquanto não vai além do óbvio. Por isso as dúvidas e perguntas do leitor são legítimas. Será o escrito motivado por algum sentimento especial? Não morará no meu subconsciente algum despeito ou inveja? No capítulo pessoal não viso ninguém em particular. Desejo sempre que as entidades e pessoas colham frutos abundantes, multiplicados e céleres do que plantam ou semeiam, que nada demore ou falte aos méritos e virtudes da sua acção e comportamento. Mesmo assim não podia deixar de escrever estas linhas. Quanto mais não seja, para desagravar a consciência das minhas obrigações e para abrir as pesadas comportas da inquietude e do desassossego.
Todavia no plano superior e indeclinável do civismo o sentimento é de outro jaez, dado o funcionamento do nosso sistema judicial e dos actores políticos e sociais. A existência da vasta e intocável estirpe de trafulhas, tartufos e mentirosos está corroendo e dissolvendo a nossa estrutura e postura cívica, ética e moral. Está a contaminar-nos e, por via disso, tornar-nos falsos, hipócritas e cínicos nos pensamentos e nas palavras, nas congeminações e nos actos. A linguagem que circula e se impõe no quotidiano vai criando uma realidade condizente. Sem darmos por isso, tropeçamos nela a toda a hora, como quem dá topadas nas pedras do caminho e não presta grande atenção.
As palavras vão sendo esvaziadas de sentido. Está surgindo e ganhando foros de aceitação e validade um estranho e inquietante idioma, prenhe de um léxico assaz predatório e transformador. O vocabulário corrente serve para nos habituar e conformar a um novo modelo de indivíduo e a um novo ideal ‘educativo’: o dos sujeitos libertos de quaisquer desafios, entraves, freios, temores, inquietações e inibições civilizacionais e morais; abertos, flexíveis, disponíveis e competentes para a falcatrua, a farsa, a insinceridade, a incoerência, a ordinarice, o embuste, sem o mínimo indício de escrúpulos, de decoro e vergonha.
O aquém-homem surge na linha do horizonte, imponente e impante de arrogância, empáfia e vaidade, suscitando admiração, adulação, bajulação, aplauso e reconhecimento. A vida está para os arrivistas, espertos, oportunistas e sandeus. Eis a nova elite inspiradora da conduta dos demais. Eis o resultado e o marco altaneiros do avanço e progresso das reformas operadas nos nossos dias. Bem hajam os ídolos, donos e fabricantes deste tempo!
Quão grande é a falta de lideranças coexistíveis e confiáveis em tantos sectores! Como nos vamos reerguer destes escombros?