A maior homenagem à língua portuguesa e à alma lusitana está, porventura, contida no romance Comboio Nocturno para Lisboa, escrito por Pascal Mercier, pseudónimo literário de Peter Bieri, um suíço, Professor de Filosofia, residente em Berlim (o livro é editado em Portugal pelas Publicações Dom Quixote). O escritor encanta-se com a ductilidade, leveza, graciosidade e sonoridade, com a doçura e suavidade da língua portuguesa e com o seu poder para nos tornar arqueólogos de nós mesmos. No fundo, maravilha-se com uma língua dotada da propensão para instalar no desassossego e mistério, na meditação e reflexão, na melancolia e saudade, na inquietude, interrogação e indagação, na dúvida, na errância e no misticismo, na pergunta e procura permanentes do que não somos nem temos, para projectar, criar e desvendar irrealidades que tanta falta nos fazem. Uma língua que é um modo de dar sentido e forma verbal e sentimental a um viver em profundidade e autenticidade a existência humana.
O ponto de partida é dado por uma cena, em Berna, na qual uma mulher agradece ao protagonista um gesto de socorro, numa língua que ele não entende. Por isso pergunta que idioma era aquele. Ao ouvir, como resposta, ‘português’, esta palavra gera nele uma “claridade crescente” e sussurra nos seus ouvidos uma melodia que “perdurou muito mais tempo do que na realidade e que ele simplesmente gostaria de ter escutado durante todo o resto do dia”. Vai daí, dirige-se de imediato a uma livraria, indagando se haverá ali, por acaso, algum livro em português. O gerente descobre um com este título sugestivo: O ourives das palavras. O cliente pede-lhe que traduza algumas passagens. O encantamento é instantâneo: nessa mesma noite apanha um trem para Lisboa, tentando descobrir o rasto e as circunstâncias do autor.
Aquilo que descobre, na sua deambulação e peregrinação por Lisboa e pelos meandros da inquietação tão tipicamente lusitana, convida-o a interrogar: “Como é que podemos ser felizes sem a curiosidade, sem as perguntas, dúvidas e argumentos? Sem o prazer de pensar?” E, depois de melhorar o conhecimento da nossa intimidade e da nossa maneira de ser e estar, chega a esta conclusão: “Sabes que mais, o pensar é a segunda coisa mais bela. A mais bela é a poesia. Se existisse o pensar poético e a poesia pensante, podes crer que isso seria o Paraíso”.
Pascal Mercier parece eleger especialmente Fernando Pessoa como ‘o ourives das palavras’, que perfazem ‘o pensar poético e a poesia pensante’. Mas essa avaliação contempla igualmente a vasta plêiade de nomes insignes em que a literatura de língua portuguesa tem sido fértil. E não será exagero afirmar que José Saramago é o artífice que congrega em si – e em nível elevadíssimo, esplendoroso, excelso, magnífico e fulgurante – a arte que tantos ourives da nossa língua elevaram ao expoente máximo nos últimos 150 anos: Eça de Queirós, Machado de Assis, Fernando Pessoa, Raul Brandão, Teixeira de Pascoaes, Guimarães Rosa, Vergílio Ferreira, Carlos Drummond de Andrade, Miguel Torga, Jorge Amado e tantos outros.
Na esteira deles e indo mais atrás ao Padre António Vieira, José Saramago, inflamado pelo telurismo de um génio barroco, recriou a língua portuguesa como uma delicada e finíssima filigrana; creditou-lhe um estatuto com dimensão e respeitabilidade universais. Mais ainda, com esforço titânico recriou, no plano mundial, o romance, isto é, o género da literatura que, há alguns anos, se apagava em agonia e muitos especialistas de renome internacional julgavam condenado à extinção. Para tanto Saramago, neto e filho de camponeses analfabetos, introduziu no romance o questionamento histórico e filosófico. Logo ele que não chegou a concluir a escola secundária!
Saramago reinventou e redimiu, sobretudo, Portugal. Trouxe-o de novo para a vanguarda dos que sonham um futuro melhor para o mundo. Com 23 letras escreveu palavras, frases e livros que nos arrebatam para o sublime e revelam a idiossincrasia de um país constituído por ‘levantados do chão’, por amanhadores da terra, por auto-didactas, por indivíduos sem ofícios ensinados mas com todos aprendidos, por gente animada de uma inigualável transcendência espiritual e anímica. São essas criaturas simples que habitam dentro dele, vivem nos seus textos e ele leva comprometida e ternamente pela mão até ao fim.
Sim, ele representa e renova, com a sua vida, com os seus escritos e personagens, a trajectória de um povo desmedido, messiânico, misterioso e sebastianista, que se alimenta de lendas, de mitos, utopias e ânsias de milagres e condensa em si os vários heterónimos e rostos, as aspirações e agruras, as nobrezas e torpezas, os gigantes e anões, os altos e baixos, os feitos e defeitos de toda a Humanidade. Um povo ligado à terra de uma maneira visceral e que, não obstante isso, assume arrojada e convictamente uma vocação e missão aladas e as transforma em mensagem, derramada por todo o orbe numa ingente e transumana epopeia marítima.
Temos que fazer jus ao nosso nome, levantar-nos do chão, lamber as feridas como um ‘cão de lágrimas’, romper o cerco da cegueira com a luz dos sonhos, servir-nos de uma jangada de pedra para fugirmos às forças da alienação e exploração e nos juntarmos aos humildes tornados nossos iguais, empreender a viagem do elefante sem medo das intermitências da morte, libertar-nos da condenação ao fado de Caim e subir no céu como morteiros impulsionados pela pólvora do espírito e ousadia, para escrevermos, com a tinta do compromisso e decência, um manual de caligrafia da existência e deixarmos de nós um memorial do impossível.
Saramago aviva-nos a esperança e a fé numa Humanidade de astronautas determinados a seguir a vidente Blimunda (Memorial do Convento), a engarrafar vontades, o combustível apropriado para que a ‘passarola’ do Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão e os humanos se arranquem do chão da sujeição e levantem voo em direcção ao infinito. Incita-nos a sermos aprendizes do ofício de transformar o mundo com a alegria e a beleza durante toda a vida, a procurá-las, reverenciá-las e vivê-las com o fervor de uma oração.
Saramago acaba de passar para a outra margem e nós ficamos órfãos de um hermeneuta que enfrentou dogmas, reinterpretou evangelhos, rasgou a escuridão e deu livre curso à inteligência, à lucidez, à razão e rectidão. Foi-se embora um obreiro maior do tempo em que o Homem está absolutamente só, por sua conta e risco, obrigado a concluir o projecto da obra imperfeita, a ser o visionário, o arquitecto, o sujeito e o realizador do oitavo dia da criação. Intimado a fazer-se em grandeza, em ética e estética, em excelência e espiritualidade.
Calou-se a palavra e apagou-se a luz que, através de parábolas, da ironia, do desassombro, da compaixão e tomada de partido, nos mostraram a cegueira de uma realidade ilusória e profundamente anti-humana. Estamos mais sós, desencantados e perplexos; porventura abandonados ao desatino e à avidez descarada dos donos desta era suja, torpe, inestética e imunda.
Continuaremos a peregrinar sem saber quanto de Abel e Caim há em nós. E sem conhecer verdadeiramente o cornaca que se senta no nosso dorso de elefante. Mas…, enquanto tivermos memória, o nome de José Saramago constará do registo do nosso caderno e diário de bordo, a lembrar-nos a obrigação de nos mantermos sempre em estado de palavra.
Não esqueçamos que Saramago elegeu ‘NÃO’ como a palavra mais importante. Tenhamos, como ele, a coragem de a pronunciar contra o veneno insidioso do supérfluo e negligente, sempre que a dignidade humana é aviltada e ferida. Não aceitemos as verdades feitas e oficiais que, a toda a hora, nos querem impingir. Saibamos reagir como ele: “a dúvida é o privilégio de quem viveu muito, será por isso que não conseguiste convencer-me a aceitar como certezas o que para mim mais se parece a falsidades.” (José Saramago: CAIM, p. 49, Editorial Caminho, Lisboa, 2009).
A nossa resistência, aqui e agora, na arena e nas ameias da aventura existencial, há-de ser um contributo para a afirmação da necessidade e possibilidade de outra condição humana, de outra vida e forma de a cumprir. Para irmos ao encontro de José Saramago que, ao comemorar os seus 85 anos, apelou às “pessoas boas” e aos “amantes da beleza” para reagirem “contra a barbárie”, para não aceitarmos calados, resignados, abúlicos, viscosos e submissos um destino de ignomínia e anomia do distintivo humano. Estaremos vivos sempre e onde as nossas palavras forem o nome correcto e justo das coisas e dos factos. Ademais, lembra Mário Soares, “só é vencido quem desiste de lutar”.
José Saramago adverte-nos: “ao final, almocreves somos e pela estrada andamos. Todos, tanto os sábios como os ignorantes” (obra cit. p. 50). Todavia ele, no dia da sua morte, refulgiu nas alturas como uma estrela ainda mais cintilante, com uma auréola de perenidade, semelhante à imortalidades dos deuses.