Texto da autoria de Francisco Sobral cuja autorização de publicação se agradece
Voltemos então ao desporto escolar.
De todos os ministros que detiveram a “pasta” do desporto desde 1974, o engenheiro Roberto Carneiro foi sem dúvida aquele que deixou, pela sinceridade e convicção do seu discurso e pela coerência da atuação legislativa, a maior (não importa, aqui e agora, se a melhor) contribuição para o que deveria ser a base do sistema desportivo português. E, sobre o desporto escolar, lhe ouvimos com insistência dizer, a educadores e a dirigentes desportivos, que não entendia como, sendo na escola que estavam as crianças e os jovens, as instalações, os recursos e as competências técnicas (pelo menos uma boa parte delas), devesse ser outro que não a escola o motor do desenvolvimento desportivo do país.
Eis o que é irrebatível – em tese.
A escola, porém, é uma instituição e um contexto complexo. Nela se cruzam tradições, formações, teorias, crenças, atitudes, sensibilidades e objetivos diversos e difíceis de conciliar. O entusiasmo que o desporto escolar suscitou nos anos imediatos ao seu lançamento entrou em perda irreversível no meio da crise geral que se instalou na escola e no sistema educativo do país antes mesmo da chegada da troika. Temos de resistir ao argumento financeiro (na verdade, o economicismo tem dois polos, não podemos rebater um tomando a mesma linha de argumentação a partir do outro) se queremos detetar alguns fatores de insucesso do desporto escolar, na ótica da formação desportiva de excelência. Só assim impediremos que eles perdurem independentemente dos bons ou maus ciclos económicos e financeiros do país.
Entre esses fatores, verdadeiros pecados originais do modelo de desporto escolar na perspetiva da formação desportiva para o alto rendimento, para a excelência, para a elitização desportiva (enfim, chame-se-lhe o que se queira chamar) implantado a partir da Lei de Bases do Sistema Desportivo, podemos identificar:
1) A ausência de uma definição de metas qualitativas para o desporto escolar, segundo os critérios de rendimento vigentes nas diferentes modalidades e nos seus diversos escalões etários.
Em concreto, as bem-intencionadas formulações gerais de princípios inscritas na Lei 1/90, de 13 de Janeiro (Lei de Bases do Sistema Desportivo, Artigo 6º, 1, 2 e 3), e na Lei nº 30/2004, de 21 de Julho (Lei de Bases do Desporto, Artigo 41º, 1, 2 e 3) não suscitaram disposições normativas suplementares, reforçando com isso o julgamento dos dirigentes federativos e associativos acerca da inconsistência da formação desportiva escolar em comparação com a praticada pelos jovens da mesma idade em contexto de preparação competitiva formal.
2) A manutenção da discriminação negativa dos mais dotados, dos “talentos” porventura, em consequência da mediocratização dos objetivos, tornando inevitavelmente o desporto escolar como uma recreação organizada, sem incentivos à assunção de exigência na aprendizagem, na consolidação das capacidades e das competências, na emulação e promoção do potencial de performance.
Dando a primazia ao convívio em detrimento da competição, o desporto escolar acabou por cair – se é que não foi o primeiro a fazê-lo – na pecha de um certo conceito de “educação inclusiva” que tomou conta da escola portuguesa, onde o sucesso é estatisticamente medido da mediana para baixo, uma atitude em discordância absoluta com a natureza do ato desportivo.
3) A inexistência de uma demarcação claramente definida entre a atividade física orientada para a saúde e a formação desportiva dirigida para a excelência.
É incontroverso que todas as crianças e jovens não têm as mesmas aptidões e disposições para o desporto. Mais: que só uma ínfima percentagem poderá realisticamente aspirar ao valor de um Carlos Lopes, de uma Rosa Mota, de uma Fernanda Ribeiro, de um Nélson Évora (as “nossas” medalhas de ouro, até por serem tão poucas, não devem ser esquecidas como padrão de referência). São precisamente esses, porém, que o sistema educativo tem a responsabilidade de identificar, de filtrar, de orientar para outras instâncias de preparação porque a Natureza não é pródiga em talentos excecionais – o que só aumenta a responsabilidade das autoridades e das comunidades educativas nessa missão, seja no desporto como na ciência ou na música.
E, à laia de parênteses, seria bom que os responsáveis desportivos do país, do mais alto nível governativo ao dirigente do pequeno clube de bairro, olhassem com atenção o que se passou nos últimos vinte anos na educação e formação dos jovens músicos em Portugal: a definição da complementaridade das escolas de ensino geral e de ensino artístico especializado; a distribuição pelo país, mesmo nas regiões populacionalmente mais deprimidas, de professores de elevada competência técnica e pedagógica (uma efeito colateral muito feliz para nós, portugueses, da desagregação dos regimes socialistas do leste europeu); as vias de continuidade à formação inicial e intermédia através de programas de ensino superior (musicologia e ciências musicais, interpretação, formação superior de orquestra, etc.), tudo isso transformou em poucos anos o panorama musical do país. Ora muitos dos princípios informadores desta mudança são transponíveis para a formação desportiva de excelência. Não é preciso inventar nada porque os exemplos estão aqui ao pé da porta – em Espanha e em França, nomeadamente – sem termos de invocar os modelos que, a leste, vigoraram até à ruína do muro de Berlim.
Claro que a formação para a saúde através de estilos de vida ativos é também um direito e um dever das crianças e dos jovens, e uma obrigação do sistema educativo – tanto mais agora que são reconhecidos, em todo o mundo, os pesadíssimos custos das políticas públicas de saúde. Porém, o discurso salutogénico e o discurso desportivo não podem continuar “embrulhados,” confundidos num campo sem fronteiras. A sua concretização efetiva a partir da escola não se põe em termos de alternativa, pois nenhum deve prevalecer sobre o outro. É uma questão simples de tudo ou nada.
(continua)