O financiamento público do Estado às federações dotadas do estatuto de utilidade pública desportiva é a matéria mais sensível, mais delicada e também a que maior tempo ocupa das tarefas da administração pública desportiva. E é por causa dela que se apanham as maiores dores de cabeça. A maior parte do tempo “gasto” a governar o desporto tem origem em matérias ligadas ao financiamento das federações desportivas. O que se replica nas estruturas administrativas de suporte. Na legislação. Nas auditorias. Nas reuniões. No contactos. Nos telefonemas. Nas movimentações.No lobbying. E numa infindável teia de procedimentos burocráticos. Que todos os anos, em vez de diminuir, aumentam. Porquê? É um mito: sempre foi assim. E um tabu: não se discute. Para o Estado e para as federações desportivas. O que explica que tradicionalmente se procure aumentar o grau de burocratização dos procedimentos sempre em nome da celestial música do “bom uso dos recursos públicos”.
Convém começar por esclarecer que estamos a falar não de recursos que têm origem nos impostos que os cidadãos pagam, mas numa percentagem das receitas que são absorvidas através das práticas dos chamados jogos sociais. É uma receita que está no orçamento do Estado consignado a um objectivo claro: o desenvolvimento desportivo. E nem passava (presumo que actualmente ocorre a mesma situação..) pelas estruturas de gestão das finanças públicas: sai directamente da santa casa da misericórdia de Lisboa para o IDP. Aí é repartido por várias fatias. Ninguém, a não ser os apostadores, “determina” qual o valor do bolo. E o modo de o repartir é um misto de “histórico” do último ano e dos recursos que estão disponíveis no presente. E o “histórico” do último ano obedeceu ao mesmo exercício. É uma espécie de razão da razão anterior. Porque o “histórico” que num ano é ponto de partida foi de chegada no anterior. E assim sucessivamente. Com mais toque aqui e ali o resultado não é, no essencial, diferente. E digo isto com à vontade de quem não tem sequer um critério diferente para apresentar. Apenas uma solução de método distinta. Tirar esse exercício das funções do Estado.
Por que razão deve ser a administração pública a definir os montantes da parcela que cada entidade (federação desportiva) anualmente recebe para as suas diferentes actividades? Ou para o programa de preparação olímpica? Porque se não limita o Estado a definir o montante global sob a forma de percentagem do valor das verbas para o efeito consignadas? E a deixar a gestão desse recurso, a sua administração e divisão, que, repete-se, não são impostos dos portugueses, ao critério dos organismos representativos das entidades apoiadas? Por que se não limita, estabelecendo regras, a sindicar, no plano financeiro e fiscal, o modo da sua aplicação?
Podemos ensaiar várias respostas. Umas técnicas e outras políticas. Mas há uma constatação simples: a esquerda, o centro e a direita nunca colocaram em causa o método actual. Nem o vão fazer. Qual a razão? Porque no dia em que isso acontecesse esvanecia-se o poder que a governação do desporto comporta. E a ultima coisa que quem governa (ou pretende vir a fazê-lo) está disposto a abandonar é a razão de ser de governar. Bem sei que as razões aduzidas possam ser outras: a de quem está profundamente convicto que essa e a melhor forma de o fazer.Com mais equilíbrio, mais justiça, maior isenção. Mesmo que não tenha como o demonstrar. É uma mera convicção.Pode defender-se que tendo as federações desportivas competências delegadas ,cabe ao delegante definir as prioridades.Mas quem conheça a realiade sabe que isso é conversa fiada. Pode também dizer-se que a natureza das entidades representativas não assegura as competências necessárias à equidade no tratamento dos representados. Nem nunca assegurará se sobre elas se não aumentar o grau de exigência e responsabilidade públicas. E embora se saiba que essa é uma forma de não responsabilizar as entidades apoiadas que encontram sempre no critério de apoio do “Estado” um álibi desculpabilizante.
Uma coisa temos como certa: no dia em que quem governa retirar o ónus do financiamento às federações desportivas das rotinas da administração pública ganha tempo para estudar, pensar, avaliar e construir uma política pública de apoio ao desporto. Coisa que manifestamente não consegue enquanto se não libertar da ideia de que pensar e desenvolver o desporto é gastar a parte mais importante do tempo a financiar e a resolver os problemas das federações desportivas. É que mesmo que o não pense, o que, em tese, se concede, não tem como fugir.