quinta-feira, 10 de julho de 2008

Nadar para fora e contra a corrente

Declaração prévia: o que se está passar com o futebol e respectivos órgãos dirigentes é suficientemente grave para merecer a censura e reprovação públicas. O governo tem a obrigação de avaliar a natureza das ocorrências e adoptar os procedimentos previstos no ordenamento jurídico de modo a salvaguardar os interesses e as competências públicas delegadas na FPF. Dito isto é preciso nadar para fora. Para fora do futebol e para fora do desporto.E contra a corrente. Para não cair no”meiinho”para onde a hierarquização mediático/social nos quer empurrar.
Nestes tempos conturbados do futebol luso ocorre-me com frequência o velho princípio de que o desporto é um reflexo da sociedade. Escrevi intencionalmente desporto porque o que se passa com o futebol só é diferente na escala, na dimensão e na visibilidade. Tudo o resto se pode passar em outras modalidades. Basta que deixem de ter pouco de desporto e façam o “up-grade”: muito de “produto”, ”negócio “,”espectáculo”,”indústria”e vocábulos equivalentes. E que passem a ter um escrutínio e interesse públicos como tem o futebol. Dito isto vale a pena acrescentar algo mais: o que se passa com o futebol em nada é substancialmente diferente, a não ser para os distraídos, do que por aí anda no resto do país. Se fosse possível fazer um ranking da “gravidade dos factos” o futebol perderia. E dou por mim não a defender o futebol, mas a criticar aqueles que não querem olhar para o país para além do futebol. É que os dirigentes do futebol não são nem mais sérios, nem mais incompetentes que os seus homólogos de outros sectores da sociedade. Respiguemos factos recentes. O que dizer do evidente desequilíbrio comunicacional no modo como são tratadas as vicissitudes do Apito Final e da Operação Furacão. As consequências gravosas para o interesse público são precisamente as inversas à atenção mediática concedida. O que se passa com uma e com outra relativamente ao lesar dos interesses do país não tem comparação possível. Outro exemplo: as pressões do Major merecem mais atenção que as escutas ilegais feitas por funcionários da PJ. Outro exemplo: as promiscuidades do futebol são tratadas como assuntos de Estado. Os negócios da banca como matéria reservada. Exceptuando a forma, pergunto: em que são diferentes? Outro exemplo: as comissões dos dirigentes nas transferências dos jogadores são práticas condenáveis; nas empresas, públicas e privadas, não são comissões, são “royalties” e é uma prática comum do negócio. Como no futebol: umas vezes às claras ; outras por baixo da mesa. Ou não é verdade? Assinaturas forjadas no futebol. E verdade! E em muitos dos projectos metidos na repartições públicas? As off-shores para o futebol são um modo de lavar dinheiro sujo. Mas as off-shores para a banca são um meio de rentabilizar capitais. Os dirigentes do futebol, uma peste que importa sanear em nome da indústria do espectáculo. Os dirigentes dos grandes grupos económicos e empresariais gente séria que puxa pelo país. Não têm dívidas fiscais? Não pagam serviços ilegítimos? Não manobram nos bastidores das influências? Não arranjam “fruta”para melhor fechar os negócios? Atente-se no modo como recentes investigações sobre aqueles últimos entraram e saíram rapidamente dos jornais de referência. Os exemplos podem multiplicar-se. Perante este descalabro ético que sector da sociedade portuguesa tem autoridade moral para dar lições ao futebol?
Não se trata de branquear ou aligeirar o que se passa no futebol. O que passa com o futebol e com o organismo de justiça é grave. Mas não é de todo diferente do que se passa com o país. De resto é cada vez mais nítido que o direito serve para muitas coisas mas nem sempre para a administração da justiça. No desporto e fora dele.
O que está doente não é futebol. Se fosse só o futebol o problema seria apesar de tudo bem mais fácil de resolver. O problema é outro. É o jogo da bola, é a política, são os interesses instalados -de que se não excluem os operadores de justiça - são as fortunas construídas em poucos anos, são os casinos, são as polícias, são as obras públicas, são as televisões, são as secretas,são os poderes não-eleitos, são as “golden share”, é a banca, é a bolsa, são as “off-shores”.É o país que está doente. E em vez de diagnosticar o que está a ocorrer limitamo-nos a seguir a onda do que mais se fala. A seleccionar sintomatologias em função do que é mediaticamente relevante. A solução vai invariavelmente para o reforço dos meios legais e similares. E para o desporto tudo agora se parece resumir a um novo edifico de magistratura: o Tribunal Arbitral. Será sério, honesto e imune a influências e poderes. Não será deste mas de outro mundo. Terá uma vocação e bênção divinas? Oxalá assim seja. Mas cá para mim há uma pequena coisa bem mais importante de discutir e mais difícil de debelar: o carácter. O carácter das pessoas. A sua formação e honorabilidade. Aquilo de que são ou não capazes de fazer. Os valores e os princípios que norteiam as suas condutas. Não do que apregoam. Nem do que rezam ou juram. Mas do que fazem. Em casa, no emprego, na sociedade. E deixem de pedir ao desporto o que ele por si só não tem capacidade de fazer: o de regenerar a sociedade!

5 comentários:

Anónimo disse...

Belíssimo texto.

Marcos Antunes

José Manuel Meirim disse...

Subscrevo, por inteiro, as palavras do nosso associado.Aliás, em particular no que respeita às qualidades das pessoas como fonte de tudo o resto, se me é permitido dizê-lo, tenho-o afirmado (e escrito)no passado.

Anónimo disse...

Prof. Constantino,

Comungo por inteiro as suas palavras. O texto é duma fidelidade radiológica ou talvez eco gráfica do estado doentio do nosso país. Cada órgão que lhe faz parte encontra-se em estado urgente de cirurgia!
Sublinho a “dormência” ou hipnótico estado de cada um de nós e logicamente de cada grupo que fazemos parte, preocupados somente com os “problemas” que nos tocam directamente, praticamente ignorando o que se vai passando ao nível de outras estruturas.
Como professora, preocupa-me tudo o que diz respeito à educação, a todos os níveis, começando pelo global até no meu particular, na minha escola e na minha casa. Provavelmente, todos nós o fazemos um pouco… Mas a todos nós, é exigido um pouco mais do que só sabermos do que se passa! Temos de colocar o dedo na ferida e cura-la do seu interior até ao exterior, do meu particular, para o global. Isto é o que tenho tentado fazer, na minha vida pessoal como profissional e académica.
Para terminar, o seu talento para escrever e denunciar está de excelente saúde, assim como provavelmente estará a sua forma de ser e agir! Os meus Parabéns!
Maria

Anónimo disse...

Ao Marcos Antunes
Dizer apenas "belíssimo texto" é a maior ofensa que se pode fazer a um autor.

Ao jmm
Já não é a primeira vez que aparece a confirmar o que outros dizem, com a preocupação de informar que já vem dizendo isso há muito tempo, quando o que o "nosso associado" disse, já muitos, antes de si, o disseram e badalaram.

E depois queixam-se que são sempre os mesmos a dizerem as mesmas coisas, já sabidas, ressabidas e gastas, de tão repetitivas.

Em tais circunstâncias, concluindo-se que não há nada de novo, fazem o seu auto-retrato.

Então renovem e remoam as ideias, e digam coisas novas.

Não aos mesmos slogans.

Anónimo disse...

Existe o índice da corrupção em http://www.transparency.org/policy_research/surveys_indices/cpi/2007
que nos diz que Portugal está em 28.º lugar no mundo.
Este índice sugere-nos que nos países que nos precedem, o caso do desporto e com opiniões públicas como as dos tablóides britânicos existem mecanismos eficazes de resolução dos problemas de corrupção no seu futebol e na restante sociedade.
O José Constantino tem razão porque a opinião pública nacional tem um comportamento diferenciado para acontecimentos equivalentes.
A corrupção é um imposto que obriga os agentes económicos a fazer transacções com custos mais elevados e por isso dificultam o desenvolvimento económico e a democracia.
Outro aspecto do artigo do José Constantino com pertinência é a da possibilidade do Tribunal Arbitral do Desporto procurando resolver os litígios no desporto poder vir a fracassar este objectivo.
Convirá aqui estabelecer com clareza o que fará o TAD e não esperar dele coisas que não estarão ao seu alcance realizar.
O sucesso do TAD dependerá da racionalidade e eficácia do todo legislativo público e dos regulamentos associativos desportivos.
Caso estas estruturas institucionais forem ineficazes não se esperem milagres do trabalho do TAD.
O desafio permanece de conseguirmos fazer melhor do que os países que estão à nossa frente nos índices de corrupção e de transparência mundiais.
Se não subirmos nestes índices muito provavelmente estaremos a cair nos índices de desenvolvimento europeus e mundiais.