terça-feira, 19 de outubro de 2010

Anestesia e Humilhação

Faz muito tempo que não me apetece falar ou escrever sobre desporto e, muito menos, sobre futebol. O leitor já reparou, com certeza, nisso. Aparentemente ando totalmente arredio dessas matérias. As minhas preocupações fundamentais são outras, embora cruzem e penetrem, de vários e determinantes modos, o panorama desportivo, o entendimento do seu papel, da sua função e configuração.
O país e os pilares da vida social e moral desabam, com um clamoroso fragor, à nossa volta e em cima de nós. A democracia - melhor dizendo, este modelo de democracia - desmorona-se e conhece um impensado final de amargura, desilusão e traição. A decência, a ética e a coragem afundam-se no pasmo, na inanição e demissão. A política – a mais nobre das actividades humanas – vai a enterrar, coberta pelo espesso e escuro manto do desencanto, fado e tragédia. A inteligência, a lucidez e a razão mancomunam-se com a falta de escrúpulos, com a vilania e com o oportunismo. As instituições estruturantes da nação entregam-se à cobardia e à cumplicidade do silêncio. O decoro e a dignidade estão a saque. Os cidadãos laboriosos, sujeitos de um trajecto honrado e limpo, vêem-se vilipendiados e espoliados dos seus mais legítimos direitos; são assaltados e ofendidos nas suas mais fundadas aspirações e convicções. Estão entregues à sua desdita, isto é, são vítimas da insaciável e obscena súcia com rédea solta no ambiente de crepúsculo e escuridão que nos encobre a esperança e dificulta os passos.

Perante isto, como poderia eu ter a vontade disponível para me entregar a laborações sobre o desporto? Não estaria a alinhar com a monstruosa campanha de anestesia e alienação, de humilhação e manipulação, a que tem sido submetido o país?
Tenho memória viva dos tempos anteriores a esta decrépita democracia. Recordo bem a irrespirável atmosfera do salazarismo e do marcelismo. Mas não me lembro de dias tão insuportáveis e injustificados como os que estamos a viver. Os de outrora, por mais negros e angustiantes que fossem, faziam parte da ditadura. Os de hoje enquadram-se no quê? Pode chamar-se ‘democracia’ a esta teia que nos aprisiona? O ar fétido, que agora se respira, obriga-nos a concluir que o regime ou modelo de democracia ‘vigente’ atingiu o estado de putrefacção.
Alguma vez no passado se assistiu a uma ‘futebolização’ anestesiante do país como a que está sendo levada a cabo nos canais televisivos pela profusão de programas tresloucados e comentadores ensandecidos? Alguma vez no passado fomos tão intoxicados nos jornais e canais de rádio e televisão, durante meses a fio, repetida e incessantemente, por propagandistas e representantes das corporações e interesses em alta, visando domesticar-nos e conformar-nos à demissão e resignação e à aceitação passiva de tudo quanto convém à engorda das hipócritas, excelentíssimas e dinossáuricas sanguessugas que colocam o mundo de rastos? As renomadas criaturas mediáticas são ou visam tornar-nos mentecaptos, idiotas, de raciocínio e pensamento infantilizados? Estão ao serviço do quê e de quem? Como são brilhantes no ofício que lhes incumbe desempenhar no funcionamento e na preservação do polvo!

Creio mesmo que o governo é sincero, ao afirmar que se vê obrigado a abandonar o seu programa e a obedecer à agenda e aos ditames dos mercados. Não duvido que assim seja; outra coisa não seria de esperar dos elementos que o integram e das forças e associações, conhecidas ou secretas, confessas e inconfessas, ocultas e travestidas, que muitos deles representam. Só que não é constrangido a isso. Pelo contrário, é hábil, certeiro e prazenteiro na obediência. Obviamente! É para isso que está em funções; não é para defender o estado social e os direitos inalienáveis de quem trabalha.
Cortar nos vencimentos e aumentar os horários e anos de trabalho certamente torna as empresas mais competitivas. Não há dúvida de que assim é. Então, se os empresários não pagarem a matéria prima, os custos da produção ainda serão mais baixos e os lucros acrescidos! É isto que conta; é este o grande e nobre objectivo que propagandeiam e nos tentam impingir até à náusea. É esta a noção de salvação nacional e de dever patriótico que espalham aos quatro ventos. Que abdiquemos do que nos pertence, nomeadamente da dignidade que nos funda e institui como seres humanos.
Vamos portanto aceitar, de bom grado, de cara alegre, de riso aberto e franco, de coração exultante e consciência aquietada, que os abutres se apoderem de parte significativa do resultado do nosso esforço e suor, do investimento sério de uma vida custosa, de rigor, trabalho e sacrifício, pautada pelo apego a princípios e valores, pela observância de normas e regras. Sim, vamos aceitar tudo isto, não porque o nosso continuado sacrifício reverta a favor da saúde da nação, mas sim para alimentar e sustentar a infame orgia e o apetite voraz dos figurões do mercado financeiro e dos seus acólitos, porta-vozes e paus-mandados. A anorexia ética e estética tomou-lhes conta do coração, da consciência e da alma, enquanto a obesidade lhes cresce nos olhos, nas ambições e nos sentimentos. A sua gula é extremamente selectiva: a pança relincha de contentamento se estiver empanturrada de carne humana, do pão e das aflições dos outros. É este o seu alimento preferido.

Não há heroicidade bastante para suportar este clima de insegurança, tristeza e pavor. Infelizmente a emigração está fora de propósito, quer pelas restrições a que está sujeita, quer pelos imperativos de cidadania e humanidade que nos intimam à resistência, aqui e agora, como uma obrigação incontornável.
Uma reflexão empenhada e comprometida acerca da conjuntura que estamos a viver traz-me à lembrança esta interessante formulação do escritor norte-americano Mark Twain (1835-1910): “O homem que é pessimista antes dos 50 anos sabe demasiado; o que é optimista depois não sabe o bastante”.
Mais, ser pessimista nesta hora é um irrevogável mandamento cívico; é sobretudo posicionar-se a favor daquilo em que se acredita e não tecer loas ou ceder àquilo que nos oprime. Revejo-me em José Saramago: “Os únicos interessados em mudar o mundo são os pessimistas, porque os optimistas estão encantados com o que existe.
Não sou um pessimista, mas antes um optimista bem informado
”.
É isto que pretendo ser e peço aos leitores para serem: um optimista bem informado e determinado.
Enfim, esta não é a ocasião mais indicada para discutir desporto e pactuar com as aleivosias do futebol e dos seus ‘homens’, caciques e mensageiros. Não dou para o reino da bola, para a importância insana que lhe é atribuída, para os despautérios que o povoam, para os espertalhões e oportunistas, demagogos e vigaristas que nele medram e vegetam, para os proventos imorais que os seus agentes auferem, para a cegueira e obnubilação dos seus adeptos. Que a Selecção ganhe, que Mourinho triunfe, mas que me deixem em paz! Não estou para aturar as permanentes masturbações e orgasmos que uma e o outro geram; não suporto a sua constante presença nos media e a invasão da minha privacidade, sobretudo pela perturbação que isso acarreta à ponderação das asfixiantes, pesadas e gravosas atribulações resultantes das inaceitáveis circunstâncias.
Não escrever ou falar de desporto e futebol é uma forma de protesto consciente e esclarecido. É sobre a vida, a sociedade e o Homem que, sempre e particularmente nesta altura, importa reflectir. As causas e os fins vêm primeiro; os meios e os instrumentos vêm depois.
Que modelo de vida, de sociedade e de Homem inspiram os reformistas? Que grandezas, padrões e referências civilizacionais nos impõem? Para onde vamos? Para onde nos levam?
Ao ver um mineiro, pouco mais do que analfabeto, liderar e conduzir para a vida um grupo de 32 colegas, soterrados e praticamente condenados à morte durante 69 dias, não posso deixar de olhar com pouco apreço os emplumados e tão cantados líderes que nos arrastam para o aviltamento, o definhamento, a míngua e a destruição.
Tenhamos um assomo de nobreza e coragem e ousemos libertar-nos do pântano da imundície em que se exibe e compraz esta casta de gente sem carácter e sem vergonha. Sob pena de sermos lama do mesmo atoleiro, trampa da mesma cloaca.

4 comentários:

Luís Leite disse...

Caro Professor, estou do seu lado e partilho as suas preocupações na íntegra.
Mas pergunto: mesmo com um eventual assomo de nobreza e coragem, libertamo-nos do pântano e desta casta de gente sem carácter e sem vergonha, COMO?...

J. disse...

"Há épocas de tal corrupção, que, durante elas, talvez só o excesso do fanatismo possa, no meio da imoralidade triunfante, servir de escudo à nobreza e à dignidade das almas rijamente temperadas."

Alexandre Herculano

jorge bento disse...

Caro Luís Leite:

Agradeço a habitual generosidade dos seus comentários em relação aos meus textos.
Quanto à sua pergunta: eu não me atrevo a prescrever fórmulas para a conduta dos outros. Compete a cada um agir segundo os ditames da sua consciência. É isso que eu tento fazer com as posições cívicas e políticas, tomadas dentro e fora do meu campo profissional. O voto (ou o não voto) em eleições é uma delas; mas há outras, seguramente com relevância no espaço público. Libertemo-nos de medos e tabus ancestrais, nomeadamente dos que a Inquisição instilou e, teimosamente, persistem na origem e no comando de tantos comportamentos.

Anónimo disse...

Oh professor agora é que são elas....A Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) requereu acesso aos documentos que autorizaram e atestam os montantes gastos pelos membros dos gabinetes dos 16 ministérios e dos secretários de Estado da Presidência do Conselho de Ministros e do adjunto do primeiro-ministro.

O pedido solicita informação sobre “a atribuição e utilização de cartões de crédito e uso pessoal de telefones, móveis ou fixos”, e também “cópia dos documentos de processamento e pagamento das despesas de representação aos membros do actual Governo”, bem como “de subsídios de residência”.

Com base na lei que regula o acesso e a reutilização dos documentos administrativos, a petição é subscrita pelo presidente da ASJP, António Martins, e justifcada com o facto de pretenderem documentar-se “no âmbito do processo de negociação colectiva que está a decorrer, relativo reduções de vencimento e subsídios dos juízes, previstas na proposta de Lei do Orçamemto de Estado para 2011.

Outro dos propósitos do acesso àquela documentação é “a verificação da conformidade dos actos autorizados e dos pagamentos realizados com as disposições legais aplicáveis”.

A pretensão da ASJP deverá ser bem sucedida, já que o diploma em que se baseia consagra estabelece que o acesso aos documentos administrativos ocorre “de acordo com os princípios da publicidade, da transparência, da igualdade, da justiça e da imparcialidade