domingo, 20 de março de 2011

O tempo esse grande corredor

Todos nós corremos contra o tempo e, claro, todos nós perdemos, mesmo aqueles que sobem ao pódio.
O tempo do pódio é um tempo síntese, breve e intenso como aquele que Youcernar concede a Adriano no leito de morte. É nessa réstia de vida que Adriano conta as suas Memórias, uma obra que demora à autora 10 anos a escrever e mais 20 para alcançar o reconhecimento por parte da Academia francesa mas que, hoje, seria tão só uma linha no currículo. Anos de consulta de fontes, de reflexão, de treino e ensaio da escrita, tal como é necessário treinar muito tempo e correr quilómetros para ganhar os 100 metros. É este tempo, essencial à reflexão, que a academia agora recusa e, por via disso, finta com nome colocado em escrito alheio dando ciência ao ditado do “meter o nariz onde não é chamado”. São estes tempos de treino que o deslumbre do pódio também parece negar.
Adriano teve uma vida plena de acção e não teve, por isso, tempo para escrever um diário ou, como o fazem os atletas a meio da vida, uma biografia. Adriano é, ou nesse fim de vida talvez não, um Imperador a quem a autora concede todo um escrito sobre as suas Memórias. Contrário ao tempo longo da autora, o tempo estrito de meditação de Adriano não deixa de fazer dele um visionário do mundo e de si próprio porque ele narra o que viveu. É pela descrição da dor, do desfazer do seu corpo, que sentimos o seu tempo esgotar-se. E, como o atleta, aspira com esse tempo breve, de narrativa e memória, de subida ao pódio, alcançar um outro tempo maior, o da eternidade.
O quê, a eternidade? Este é o título de outra obra de Yourcenar, uma questão premente já discutida na interpretação das fontes que a inspiram a escrever sobre Adriano. Nesta luta contra o tempo a autora recusa o suícidio do Imperador, descrito nas fontes, e faz de Adriano um modelo de humanidade que aceita os limites do seu corpo e, até ao fim, despreza o desespero e, com igual serenidade, a esperança. Adriano sente o corpo no seu fim e sabe que as suas Memórias só serão eternas enquanto existir alguém para as lembrar!
É dessa relação com o outro, que nem sempre nos entende ou lembra, que trata A obra ao negro. Esta obra retrata Zenão, um homem que vive a época medieval com um conhecimento e uma liberdade de espírito pouco plausível com o obscurantismo que ele acha que o rodeia. Ele é um herói criado pela autora, sem vitórias conhecidas porque a ele lhe resta apenas a clarividência do mundo que o rodeia, dos perigos que corre por dizer não e, também, por dizer sim! Este herói do quotidiano não espera pela hora da morte para refletir sobre a sua condição. Sem o poder de Adriano ele é obrigado a sobreviver no contexto adverso de um mundo que não sente seu e que, não obstante a sua tolerância face ao desconhecimento dos outros, ninguém lhe tolera uma outra visão, um outro modo de ver a estátua que, digo eu, sobre Adriano se ergueu. Eu colocaria Zenão a refletir sobre todos aqueles que durante horas e anos correm e que, apesar desse esforço inaudito, nunca ao pódio sobem. É também nesses outros anónimos que a comunidade se revê e por isso lhes ergue a estátua, ora dedicada ao soldado desconhecido ora, como na de Alpiarça, dedicada aos ciclistas, ao “Primeiro entre os primeiros”, lembrando que o mérito de ser primeiro é diferente de ser o único.
Em o tempo esse grande escultor Yourcenar mostra como até uma estátua, perene e inerte, se altera aos olhos que quem a vê, tal como a vitória desportiva que este fim de século inflamou e sobre os atletas uma forte pressão instalou, como se o mundo, ou a vida deles, apenas dependesse desse mísero instante. São estas vitórias, mais as que Adriano teve na construção de todo o Império, que Zenão questiona. Zenão é homem, alquimista, anatomista, viajante entre outros atributos que fazem dele uma múltipla identidade, aparentemente um ser como todos nós. E nenhum de nós, mesmo o atleta mais afamado, não deixa de ser filho e, quando pai, será também motorista, cozinheiro, arrumadeiro, conselheiro e contará até 100 antes de erguer a mão a um filho por causa de uma petulante e chocante observação sobre um seu ensinamento da vida. Por parte dessa nova geração, que nos desafia e nos questiona na razão que julgamos dominar, esperamos a recriação, e porque não a invenção, de um novo olhar sobre a estátua e, já agora, sobre o desporto de competição e o significado das suas vitórias.

10 comentários:

Luís Leite disse...

No Desporto, como em qualquer outra arte ou profissão, a glória é efémera.
Mesmo aqueles que atingiram a mais gloriosa das famas e um reconhecimento fanático, um dia descobrirão que, ao passar na mesma rua onde todos os apontavam, já ninguém os reconhece.
São esquecidos enquanto pessoas.
Mais cedo ou mais tarde isto acontece.
A menos que morram no auge da fama e se tranformem directamente em mitos.
É inexorável.

Os mitos não envelhecem nem morrem.
Mas deixam de ser humanos.
Passam a ser ícones, fotografias, filmes, lendas.
Sem sentimentos.

É a vida...

joão boaventura disse...

Daí a velha sentença britânica:

Take time, while time is, for time will go away.

joão boaventura disse...

O significado das vitórias deveria ser traduzido em transferências da vontade e do querer.

Para os amadores a vitória desportiva, e respectiva taça ou medalha, significa que transportará para a sua vida privada e profissional o mesmo querer, a mesma vontade de alcançar a mesma excelência.

A menos que o elevado e vitorioso empenho profissional, com que pontua e age, os transporte igualmente para o desporto.

Porque o agir profissional na vida civil deve reflectir o agir desportivo, como este deverá ser o reflexo do primeiro.

Um é o que se posiciona à frente do espelho, e o outro será o seu reflexo.

Para os profissionais desportivos, a vitória é o acúmulo porque ambas situações se fundem numa só: profissional do desporto.

Não esquecer o que William Shakespeare sentenciava sobre este tema:

"If all the year were playing holidays to sport would be as tedious as work." (King Henry IV)

joão boaventura disse...

Em suma, e numa visão panorâmica:

"Nós somos o que fazemos.
O que não se faz não existe. Portanto, só existimos nos dias em que fazemos. Nos dias em que não fazemos, apenas existimos."

Padre António Vieira

joão boaventura disse...

E já que o tempo é o maior corredor, oportuna a oferta da visão do homem que corre com o tempo.

E não só.

Como o tempo se vai alterar, na passagem do próximo sábado para domingo, também o tempo se compagina nos desenhos ginásticos, como se cada compasso rítmico marcasse o ritmo do tempo.

Luís Leite disse...

Caro João Boaventura:

A sabedoria está do seu lado.

O conhecimento de muito perto de grandes atletas nacionais e estrangeiros levou-me, com o passar do tempo, a não querer saber muito da sua vida privada.

Não há no Desporto, como em qualquer outra actividade profissional, uma relação directa e proporcional entre valor desportivo (facilmente mensurável) e valor cívico (mais difícil de medir).
Há de tudo.

De qualquer forma, quem sou eu para avaliar vidas privadas?

joão boaventura disse...

Retornei ao meu comentário anterior e verifiquei que os passos ginásticos, estariam descompassados, por inépcia minha e não do tempo, do que rogo desculpas.

joão boaventura disse...

Caro Luís Leite

Anoto o seu reparo como outra visão.

Da extrapolação da excelência que o desportista anseia alcançar, deve ser extensiva - como exemplo e recomendação - para a vida profissional e para a vida privada.

Com o que não se pretende devassar a vida privada alheia mas tão somente que a excelência desportiva seja estendida e alargada a ela, com o mesmo afã que aplica no desporto.

Isto para dizer que a excelência não pode esgotar-se no desporto, sob pena de pautarmos os nossos comportamentos desigualmente.

Em certa medida, e de forma simples, pretende-se o ideal, irreal e utópico, do homem igual a si mesmo: alcançar a excelência em todas as vivências, e se o desporto for a motivação, que a desenvolvamos.

Cordialmente

joão boaventura disse...

Caro Luís Leite

Por exemplo, eu gostaria que estas duas senhoras, representassem o que elas sabem fazer melhor na dança das nossas avós - o Charleston - como o espelho de outras acções na vida, ou seja, o mesmo empenho

Sem ironia.

Luís Leite disse...

Em tese concordo totalmente consigo.
A experiência pessoal, sem querer incorrer em generalizações abusivas, levou-me a ter que encarar a realidade de forma pragmática.

A realidade está, normalmente, longe da utopia.
Mas há excepções. Que devem ser referências exemplares para a sociedade.
Infelizmente, a Comunicação Social não revela interesse por casos exemplares.