domingo, 5 de junho de 2011

Velhos hábitos

Um dos fundamentos da independência de uma organização - neste caso de uma autoridade desportiva - assenta na possibilidade de tomar decisões racionais fundadas em objectivos bem definidos, com vista a promover os interesses da actividade que governa ou regula, em particular dos seus agentes (atletas, técnicos, clubes), sem a intromissão de interesses terceiros nos resultados das suas decisões.

Nem sempre o sucesso nos resultados se encontra de mão dada com a independência - nomeadamente a independência política -, bem pelo contrário. Porém, quando uma organização toma decisões lesivas e se acumulam suspeitas sobre a sua probidade, numa mistura explosiva de incompetência e corrupção, os efeitos são devastadores.

A cronologia recente de acontecimentos durante as eleições para a FIFA espelham este facto, com a exploração mediática dos escândalos de corrupção e compra de votos. A promiscuidade entre politica e desporto é tão velha quanto as normas que a proíbem. Não é pela sua consagração estatutária ou regulamentar, como recentemente se constatou no movimento olímpico português, que usualmente se olvida tal princípio de independência, até ao momento onde os interesses colidem. Várias das grandes organizações desportivas passaram por momentos críticos semelhantes. Os bastidores do poder, no caso concreto da FIFA, encontram-se documentados, provavelmente com o rigor de nenhuma outra instituição federativa internacional, em diversas obras. O jornalista americano Grant Wahl, que assumiu inicialmente a sua candidatura ao cargo de presidente do organismo que superintende o futebol mundial, descreveu, por dentro, o funcionamento de todo o sistema.

Compreende-se e justifica-se o interesse jornalístico, no exercício da sua função de “watchdog” numa sociedade moderna, lamenta-se contudo, salvo raras excepções, que a análise se tenha focado apenas no domínio ético e se tenha afastado de um elemento decisivo que alimentou aquele que pode ser o maior caso de corrupção na história do desporto moderno, concretamente a incapacidade dos quadros dirigentes em adaptarem a governação das suas organizações a uma sociedade globalizada, com os novos desafios políticos, económicos, culturais e sociais que hoje atravessam o desporto, desde a sua vertente profissional até ao mais singelo praticante informal.

Blatter perdeu a face na guerra que comprou com a União Europeia na sua proposta, inviável, da regra “6+5”, tomou posições sexistas e homofóbicas que debilitaram o prestígio da organização que dirige. Foi incapaz de modernizar a estrutura do futebol, compreender os sinais dos tempos, alterar os vícios do seu modelo de gestão ou apresentar uma agenda reformista quando todos os analistas há muito anteviam um desfecho como o sucedido.

Não se liberta tão cedo do libelo de clientelismo político, da teia de pequenos favores em que enredou a FIFA e da falta de cultura democrática na sua liderança, denunciado por grupos influentes que pugnam por uma reforma radical da instituição, ou por entidades representantes dos clubes e patrocinadores que reclamam medidas de fundo.

Para já quais as intenções do novo presidente eleito? Recomendar um político com um passado cristalino (!?) como Kissinger para pôr ordem na casa e contratar um antigo quadro do FBI para investigar as ocorrências… Tudo isto enquanto florescem os casos de viciação de resultados.

Acresce, no caso da FIFA, mas também de outras federações internacionais, que a atribuição da organização dos seus eventos de maior nomeada a economias emergentes e países da antiga esfera soviética, no intuito de abrir novos mercados e, em alguns casos, obter, entre outras garantias, decisões mais céleres devido à falta de escrutínio democrático, acarretou, obviamente, um enfraquecimento dos países ocidentais na cadeia de poder das grandes organizações desportivas e a maior influência de outras latitudes, cujos países não são propriamente o paladino de independência e transparência, como é o caso da Rússia ou do Qatar.

Por outro lado, são ainda os países do chamado mundo ocidental que concentram a maior fonte de receita de patrocínios e direitos de transmissão, essenciais à valorização económica das grandes competições. No caso do futebol, 90% das receitas provêm ainda da Europa. Mas o velho continente não irá acolher as próximas três edições…Ou seja, os elevados volumes de receita poderão vir a ter os dias contados.

Avolumam-se assim os riscos de uma intervenção mais incisiva do poder político, como ocorreu recentemente através do Parlamento Europeu, e pode também repetir-se sempre que a auto-regulação não se realizar através de “princípios de boa governação”, conforme a União Europeia assume no Livro Branco sobre o Desporto.

A propósito de tais princípios, na plêiade de informação que tem vindo a ser produzida no Reino Unido, aproveitando o ensejo da realização dos Jogos Olímpicos para reflectir sobre o futuro do desporto britânico, aqui fica uma aplicação prática e concisa, para adaptar as organizações desportivas e a cultura de quem as dirige a um quadro de governação ao nível das exigências e expectativas que a comunidade nelas deposita.

8 comentários:

Luís Leite disse...

O mundo do Desporto assenta, por um lado, em bases pseudo- idealistas e politicamente correctas, mas tendo sempre em atenção determinados interesses conjunturais de natureza político-económica que prevalecem e, por outro, no funcionamento de mercados que funcionam em bases completamente liberais.
No fundo, existem grupos de pressão complexos e manda quem tem mais força politico-financeira.
Nenhuma entidade foge a esta realidade, seja a patética (sem rumo) e pseudo-moralista União Europeia, sejam as restantes organizações que superintendem o Desporto: o Comité Olímpico Internacional, as Federações Internacionais das inúmeras modalidades, a Agência Internacional Anti-Dopagem e os Governos nacionais.
A "regulação" não é mais do que o ajustamento (colagem) a esses interesses pós-modernos.
Sobra a demagogia.

Fernando Tenreiro disse...

Caro João Almeida,

É uma boa peça. Duas notas:

I
Discordo da feição que dá ao 6+5 que considero uma medida que interessa à Europa e que só a Europa é que ainda não compreendeu.

Dou-lhe um exemplo: antes do Livro Branco existiam alguns grandes economistas do desporto que juravam que o interesse da Europa era a convergência para o modelo americano e que o G18 e os clubes profissionais seriam o futuro.

Afinal veio o Livro Branco e as ligas profissionais não saíram das respectivas federações como se prognosticava.


II
No seu último parágrafo refere a questão da regulação pública em dois níveis no da União Europeia e no nível nacional do Reino Unido.

Em ambas as situações os contributos públicos visam contribuir para a melhor regulação privada.

No primeiro sugere que a atribuição do mega-evento tem insuficiências por parte do país organizador e pela avaliação que deve ser aprofundada por parte da federação e no segundo produzindo conhecimento no domínio da governance.

Dois elementos a inspirar o Governo de maioria na área do desporto?!

João Almeida disse...

Caros Fernando Tenreiro e Luis Leite

Blatter não soube impor a sua agenda e a governação da FIFA mais não foi do que a acomodação de interesses anquilosados que Luis Leite fala. Autista ás mudanças de contexto que foram ocorrendo nos últimos anos. Em particular na UEFA e na União Europeia.

Blatter continuou a gerir um potentado como sempre fez nos mandatos anteriores. Pensou que bastaria impor a regra 6+5 e depois teve de recuar no Congresso de Joanesburgo.

Não discuto os méritos da proposta. Discuto a incapacidade de governar num regime mais democrático.

Aliás, se há um responsável pelo fim do G14 e de uma eventual maior aproximação ao modelo americano tem um nome. Joseph Blatter.
Por ironia do destino talvez tenha sido essa a sua maior medida reformista. Mas teve um custo. Abrir a governação da FIFA a novos actores (ECA) bastante críticos dos seus desmandos e abrir os cordões à bolsa através do pagamento aos clubes com atletas representados nas selecções nacionais presentes no campeonato do mundo.

Platini, por exemplo, soube jogar muito melhor neste tabuleiro. Negociou com a UE um modelo que visa os mesmos propósitos da regra 6+5. Conseguiu implementar mecanismos de licenciamento e fair-play financeiro, que reconfiguram princípios estruturantes do Modelo Europeu de Desporto, o qual assenta apenas no mérito desportivo.

Também por isso o termo Modelo Europeu de Desporto (MED) perdeu actualidade, bem como a dicotomia entre modelo europeu e modelo americano. Hoje fala-se apenas em "dimensão europeia do desporto". A UE abandonou o termo MED há muito.

O modelo americano, muito mais regulado por critérios económicos (tectos salariais, indicadores financeiros, sistema de draft, franchising de clubes, ligas fechadas) do que o europeu (livre circulação de atletas, competições abertas em regime de promoção-despromoção em função do mérito desportivo) teve em Blatter o seu mais firme opositor. E teve-o apenas com o propósito claro de manter o poder das federações nacionais que o sustentam. Daí que a FIFA jamais tenha interesse em que as ligas profissionais saiam do domínio federativo.

Convém não encontrar subterfúgios. Blatter apenas quis manter o futebol a todo o transe na esfera dos interesses que ele habilmente gere. Não teve um programa amplo para adaptar a governação do negócio do futebol a uma economia moderna e aos seus actores político-desportivos. A sua estrutura limitou-se a ir atrás dos votos (África) e dos dólares (Russia e Qatar)com os resultados que estão à vista e mais que irão surgir.

Quanto à regulação privada e ao impacto de grandes eventos? Demitiu-se de regular a actividade de agentes de futebolistas, quando se demonstrava seriamente preocupado com o tráfico e exploração de jovens atletas.
Ignorou relatórios técnicos que apontavam falhas preocupantes na capacidade organizativa dos paises que virão a acolher os p´roximos campeonatos do mundo.

Em suma, a FIFA, ao contrário da UEFA, não tem um modelo de governance, nem qualquer dos 7 principios do pequeno código inglês que está no post.

Fernando Tenreiro disse...

Caro João Almeida
Deixe-me só sugerir que o fair-play financeiro não é o mesmo que o 6+5. Na sua essência o primeiro é capital ético e o segundo é capital desportivo.
São matérias a acompanhar e a desenvolver.

João Almeida disse...

Caro Fernando Tenreiro

Não me estava a referir ao fair-play financeiro, mas sim à regra dos jogadores formados localmente (homegrown players rule),que a UEFA soube negociar com a União Europeia, cujos propósitos e objectivos são semelhantes ao 6+5.

Luís Leite disse...

Ou há liberalização total do mercado, mas então não podemos dizer que o FCP, o SLB e o SCB são equipas portuguesas e que o futebol português está no topo europeu, ou há intervenções com limitações proteccionistas do desporto nacional, que lhe devolvam identidade e representatividade.
O 6+5 proposto é
era um compromisso com uma lógica.
Pessoalmente, concordo com limitações do número de jogadores/atletas estrangeiros por clube, em todas as modalidades.
Mas também aceito a liberalização total, como no desporto americano.
Mas então não venham falar no sucesso falacioso das equipas portuguesas.

Fernando Tenreiro disse...

Caro João Almeida,
Há condições para se manter a discriminação dos nacionais como actualmente acontece, por exemplo, em Portugal cujos clubes jogam com mais jogadores internacionais.

Com a proposta da UEFA o líder do clube europeu vai buscar jovens aos países de nascimento e dar-lhes formação durante 3 anos.

Insisto, a discriminação do 6+5, segundo a nacionalidade, defende o interesse nacional.

A solução de Platini parece-me um 'second-best' face à de Blatter. Por isso a UE aprova a primeira e ainda não compreendeu o interesse para os países europeus da segunda.

É um tema interessante do ponto de vista económico compreender qual a real valia das medidas que em cada momento se colocam ao desenvolvimento europeu, tanto pelo lado da União Europeia, como o proposto pelos agentes privados.

João Almeida disse...

Meus caros

Não discuto o mérito da proposta, mas a estratégia de negociação.
Blatter sabia bem que Bosman pôs fim a uma regra muito semelhante. Na altura o 3+2.

Seria muito dificil a Comissão alterar a sua análise sem uma argumentação forte que justificasse o carácter discriminatório da regra e a sua proporcionalidade.

A FIFA encomendou um estudo ao INEA (disponível neste bloque), o qual foi arrasado por diversos analistas como uma peça claramente parcial e pouco fundamentada.

Um dia abordarei o tema das quotas de nacionalidade neste blogue.