terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Os planos são rascunhos?

Um dos arcaísmos em matéria de gestão urbana e de planeamento de espaços para a prática desportiva é o conceito de que se deve garantir cerca de 4m2 como área útil desportiva por habitante. Trata-se de um valor arbitrário. Não tem qualquer fundamentação técnica ou científica. Fez escola em algumas instâncias europeias. Mas como indicador de planeamento é um erro. Basta pensar que trata por igual o que é diferente. Homogeneíza quantitativos populacionais que, supostamente, teriam iguais necessidades de procura/prática desportiva. Independentemente de perfis etários, sociais e económicos.
Associado àquele arcaísmo estão as chamadas “cartas desportivas”. Um depositário de boas intenções. Mas que não ultrapassa, em grande número de casos, a possibilidade de análise da situação ou o diagnostico. Passar desta fase para a da previsão de necessidades pede outros instrumentos de planeamento. Onde estão eles? Com que critérios? Como se estruturam? Em que se fundamentam?
Muitos dos actuais modelos de planeamento estratégico assentam em visões e valores que o desporto já não partilha. Partem do modelo tradicional do funcionamento de uma organização desportiva: um sistema aberto, em que se podem observar as relações directas e previsíveis entre causas e efeitos, entre oferta e procura, entre disciplinas desportivas e práticas. É um modelo que corresponde a um desporto unipolar: o desporto de competição. Mas que tem dificuldades em se adaptar a um modelo plural onde convivam várias formas e expressões desportivas. E onde o sector publico se tem de articular com o associativo e o privado.
O planeamento urbano evoluiu, nos últimos anos, de uma perspectiva fixista para um perspectiva estratégica, mais aberta, mais móvel e muito ligada às lógicas de qualificação e competitividade das cidades e das regiões. E esta mudança obrigou a convocar outros saberes disciplinares e outros actores sociais para além dos associados ao planeamento tradicional. É uma aproximação que se afasta dos modelos clássicos, previsíveis e arrumados que raramente passam do papel e que se tornaram exercícios inúteis.
Na realidade, o processo de planeamento tornou-se, com frequência, um elemento conservador, apesar do seu propósito de pretender "facilitar as mudanças". Os planos são, por vezes, construções tão detalhadas e rígidas que se tornam frágeis, caindo por terra ao mínimo ajustamento. O controlo a intervalos de tempo determinados e essencialmente quantitativo, permite verificar e corrigir desvios face ao que tinha sido planeado. Mas, muitas vezes, é apenas um controlo da evolução da execução. Não retroage às escolhas.
Pensar o planeamento dos espaços de desporto é antes de mais pensar a “cidade” e o modo ela se organiza. O que deve oferecer aos que nela vivem, habitam ou trabalham. As cidades dependem crescentemente de factores económicos. Da capacidade de fixar e qualificar pessoas. De atrair investimento. De garantir boas politicas de sustentabilidade ambiental. É neste quadro que as politicas de equipamentos desportivos se têm de integrar. Pensá-lo de outro modo é o caminho mais curto para uma política de “pedras mortas”.Anunciar novos projectos sem ligação a uma lógica sustentada de”projecto de cidade” é, a prazo, a possibilidade de ter equipamentos desportivos sem qualquer relação com a realidade social envolvente. Pensar as necessidades de pratica desportiva local pelas necessidades da prática desportiva federada é desastre à vista.
A lógica do Estado central normativizar o planeamento não é distinta da lógica que normativiza os contratos públicos. Em nome do interesse público, da transparência e da boa governação criam-se modelos que são um pesadelo e um bico-de-obra para quem tem de os executar. E que, em muitos casos, o cumprimento da norma é um fim e o serviço público um seu efeito colateral.
A superação da situação nacional não se ultrapassa com métodos de crivo administrativo. Em que uma entidade central governamental “dá parecer” sobre a viabilidade/pertinência deste ou daquele projecto. Que habitualmente se limita às condicionantes técnicas. O problema é mais vasto. É do âmbito do saber e do conhecimento. Que não está mais presente na administração central do que na local. Tudo seria mais fácil se assim fosse. Mas não é. O essencial reside sobre o processo de formação e construção do conhecimento que conduz ao planeamento e à estratégia. E não sobre o resultado desse processo. Sob pena de se definir um destino, mas não ter mapa para lá chegar. Há sempre o risco de se perder.

2 comentários:

Luís Leite disse...

J.M.C. faz uma análise acertada, no essencial, sobre as fórmulas administrativas e modelos teóricos serem aplicados pela Administração Central de forma cega e não contextualizada.
Depois, aparentemente, defende um "upgrade" no exercício do planeamento urbano, baseado em níveis (técnicos) de conhecimento não especificados. Reconhece que a qualidade desse exercício pode residir preferencialmente na Administração Local. Deste modo, coloca-se, sem dúvida, ao lado dos que defendem a regionalização.
O problema, insisto, está na falta de qualidade dos decisores políticos para quem, geralmente, o planeamento é apenas um instrumento manipulável para conseguir determinados objectivos que não passam pelo desenvolvimento harmonioso e adequado, mas sim por outros interesses não declarados e, muitas vezes, "politicamente correctos".
Independentemente do nível hierárquico da Administração Pública.

josé manuel constantino disse...

Caro Luís Leite. Obrigado pelo seu comentário.
Não sou adepto da regionalização. Mas sou defensor de maiores competências para as autarquias. E defendo-o sem ter de acrescentar o que habitualmente os autarcas dizem: que querem mais competências se transferirem os correspondentes meios. E não o defendo porque sei que as autarquias gastam muitas vezes onde não devem e não o fazem onde deviam.
Mas mais. Sou a favor de governos locais maioritários. De autonomia dos municípios para defenderem o modelo de governo incluindo o número dos autarcas executivos. De autonomia para definirem as remunerações do seus trabalhadores. De autonomia para definirem o modo de gerir o território. Sei que os desvarios e a cedência aos interesses imobiliários não concita muitos adeptos nestas teses, mas como você diz e bem, o problema é o da qualidade da decisão politica e esta não foi distribuída assimetricamente pelo poder, de modo a que houvesse uma razão superior no governo central e o governo local padecesse dessa ausência
E no capitulo dos equipamentos desportivos entendo que só faz sentido o governo central intervir, para além da normativização das condicionantes técnicas e de segurança, no capítulo do espaços para o espectáculo desportivo e sempre que estejam em causa financiamentos com origem no governo central.