quinta-feira, 14 de abril de 2011

Karaté: arte marcial ou desporto de combate ? (I)

De Armando Inocentes recebemos este contributo, que se agradece.


Foge este post um pouco aos assuntos ultimamente discutidos em “Colectividade Desportiva”. Mas surge a bem de um alargamento do leque de discussões e do esclarecimento sobre modalidades ditas “menores”...
Na mitologia romana Marte era o deus da guerra. É normal falarmos de “arte marcial” quando assistimos a uma competição ou uma demonstração de Judo, de Taekwon-do, de Kung-Fu ou de Karaté. Centremo-nos neste último...
O termo «karaté» é um estrangeirismo até incorrecto, pois só em 1936 foi o termo «karate-do» o adoptado (e que significa “a via das mãos vazias”) no Japão. Será uma arte marcial hoje em dia? Será um desporto? Em caso afirmativo, que tipo de desporto?
Enquanto na grande maioria das modalidades o praticante domina um objecto (bola, disco, dardo, patins, raquete), nos «desportos de combate» o dominar o adversário é o fim último – o objecto é neste caso um ser que age e reage, um ser que pensa e que sente. Nos “desportos de combate” não há um elemento dinâmico (ser humano) e um elemento físico (objecto), pois existem dois elementos dinâmicos, autónomos, criativos, dispondo de uma motricidade intencional, que se opõem e confrontam até se designar um superior ao outro segundo certos parâmetros. O facto de ambos procurarem a vitória, de um procurar submeter o outro confinado pelos critérios pré-determinados, o facto de um procurar dominar o outro segundo certas regras, o facto de um ter de se superiorizar ao outro para ser declarado vencedor encontra, de facto, a sua origem no universo guerreiro. O contacto corporal que existe nos desportos colectivos não se confunde com o contacto corporal directo intencional nos «desportos de combate». Nestes, o corpo do outro é objecto e objectivo da acção. Centramo-nos aqui no Kumite (vulgo “combate”), ficando a outra prova, a Kata (sequência de formas técnicas, “combate” contra quatro adversários imaginários), como representação, a estilização do mesmo.
Mas se qualquer jogo é um simulacro de combate em que não há derramamento de sangue e em que a morte é simbólica, ritualizada, verificamos que no desporto o verdadeiro «combate» não existe. “O combate é a verdadeira actividade guerreira (...). Combate significa luta, e nesta o objectivo é a destruição ou conquista do inimigo, e o inimigo, em combate particular, é a força armada que se coloca em oposição a nós” (Clausewitz, 1997).
A representação guerreira do combate (simbólica), regulamentada, a simulação da violência, e o confronto lúdico, a sua institucionalização, levam-nos a conferir hoje em dia ao Karaté o estatuto de desporto. O simbolismo presente no mesmo faz com que tenha mais sentido falar em «jogo» do que propriamente continuar-se a falar em «combate».
E não estará o Kumite (etimologicamente “encontro de mãos”, normalmente designado como «combate»), numa aproximação a um conteúdo histórico, mais próximo do «duelo de desagravo» do que propriamente do «combate»?
Mas a Sistemática do Desporto apresenta-nos hoje a seguinte Taxonomia: Desportos Colectivos, Desportos Individuais, Desportos de Combate, Desportos de Confrontação Directa, Desportos de Adaptação ao Meio e Desportos de Grandes Espaços (Almada, 1992). Peixoto (1997) apresenta ainda dois planos taxonómicos: um semelhante ao anterior, designado por «Desporto», e outro ainda que designa por «Educação Física e Desporto».
Sem dúvida que nesta Taxonomia se integra o Karaté nos Desportos de Combate.
Como características mais marcantes pode-se dizer que estes privilegiam o conhecimento do “eu” no confronto com situações críticas (a noção de morte, mesmo que simbolizada, está sempre presente) e no diálogo com o outro. A principal variável em jogo é precisamente o conhecimento do “eu” total integrado no grupo (Almada, 1992).
Também Rodrigues (s/d) apresenta como características marcantes (competências) deste grupo taxonómico de actividades desportivas as seguintes: capacidade de ler o opositor e consequentemente ter uma maior capacidade de antecipação, capacidade de encaixe em situações críticas e capacidade de defender, atacar e fintar em função do opositor e do contexto. Mas Rodrigues (id.) refere que os Desportos de Confrontação Directa têm como característica mais marcante o diálogo com o adversário, e que normalmente é realizado através de um “objecto interposto”. Embora sejam idênticos aos desportos colectivos quanto aos objectivos, estes diferem daqueles quer pelas dinâmicas geradas, quer pelo número de jogadores envolvidos quer ainda pelas interacções daí resultantes. Como principais competências salienta a capacidade de diálogo com o opositor, a capacidade de colher indicadores úteis no opositor, a capacidade de iludir o opositor e a capacidade de transmitir mensagens ajustadas ao opositor e ao contexto de cada situação, o que também coloca o Karaté muito perto desta nomenclatura – Desportos de Confrontação Directa.

Veremos num próximo post qual a melhor terminologia para esta modalidade.

17 comentários:

Leonardo disse...

Do caro amigo "Kickboxing" (o prof. Meirim fica logo a saber de quem se trata), fica o agrado pelo interesse do Blog a colocar este texto.

Deixo a informação que no dia 13,14 e 15 de Maio vai decorrer em Viseu o Congresso Cientifico Internacional de Desportos de Combate e Artes Marciais com o nosso caro amigo Abel Figueiredo a ser um dos organizadores.

Eu vou participar e exorto a todos os demais a também fazer o mesmo.

Cmc,
Leonardo Cunha

Armando Inocentes disse...

Pois este ano eu não vou participar no Congresso. O motivo é muito simples: quando no último Congresso fiz a minha apresentação, os congressistas foram impedidos de me questionar pelo Dr. Abel Figueiredo e não se abriu um espaço de discussão, pois estrategicamente inventou logo um cofee break de seguida!

Ora, isto assim não é um congresso.

Aliás, a 20 de Maio de 2009, o Dr. Filipe Pamplona deu sugestões para a melhoria do congresso - estão em http://vitoralbertorosa.blogspot.com/2009/05/propostas-de-melhoria-do-congresso.html.

Mas congresso à parte,a questão que se coloca é: praticamos uma arte marcial ou um desporto de combate? Qual a melhor classificação para estas actividades (incluindo o "Kickboxing" também)?

Venham de lá os contributos para o debate para ver se se faz luz...

Obrigado a todos.

Luís Sérgio disse...

Excelente texto, ainda não tinha pensado no karaté nestes termos, vou pensar no que escreve o Armando, para já uma coisa me parece, o karaté é muito mais que um desporto, também é desporto na verdade, mas onde colocá-lo, Arte Marcial, sem mais, por respeito à tradição ? Tudo muda , tudo se actualiza e o karaté não pode fugir ao devir.
Para avançar com algo mais é preciso reflexão e leitura sobre o tema , vou ver se faço trabalho de casa.
Obrigado por publicarem este post,
bom documento para suscitar a discussão e o estudo.


Um grande abraço ao Armando que continua a escrever e a pensar sobre estas e outras coisas.

Luís Sérgio

joão boaventura disse...

Caro Armando Inocentes

Como ponto de partida talvez interesse referir que modalidades, como o boxe, a luta, o tiro, a esgrima, o tiro com arco, o tiro com besta, a equitação (não esquecer que o cavalo é o herói do séc. XVIII), devem ser igualmente consideradas "armas marciais ocidentais".

Algumas destas "artes marciais ocidentais" apresentam similitudes com as "artes marciais orientais".
Nas orientais japonesas era exigido aos seus praticantes o domínio de três armas:

- manejo de armas com as duas mãos: o sabre
- manejo de armas à distância: a esgrima com lança
- manejo de armas de propulsão: o tiro com arco

Independentemente do domínio de duas actividades: natação e equitação.

E ainda a destreza de combate com armas: kempo e karate, sumo e jujitsu que, mal comparado são parentes suaves do pancrácio dos antigos jogos da antiguidade grega, ou da luta corpo a corpo de algumas etnias africanas..

Importa aduzir a significativa posição social dos praticantes de ambas artes marciais.
Enquanto as ocidentais constituíam apanágio da aristocracia, as orientais tinham, entre os seus praticantes, pessoas com estatuto social elevado: samurais japoneses, mandarins e monges chineses e vietnamitas. Os japoneses reconheceram que, do primeiro contacto que tiveram com a civilização chinesa, no séc. I, resultou importarem as actividades marciais praticadas pelos nobres.

Alguns autores consideraram que as artes marciais estariam aparentadas com a educação física, tal como em França o aparecimento da bicicleta constituía “um bom meio de educação física”. O parentesco tinha como argumento a semelhança dos movimentos síncronos dos ginastas, como os movimentos cadenciados e ritmados de katas, na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Seul, na demonstração do taekwen-do, ou como podem ser vistos numa aula das ditas “artes marciais”.

(continua)

joão boaventura disse...

(conclusão)

O próprio Jigoro Kano, fundador e criador do judo, quis fazer da sua arte uma espécie de educação
física, para evitar que as “artes tradicionais japonesas”, como as denominava, fossem suplantadas pelos “exercícios militares” europeus, com o que eliminava a designação de “artes marciais” que não considerava apropriadas.

Quando Jogoro Kano fundou a sua escola, o Kodokan, em Fevereiro de 1882, o judo aparecia como reminiscência da ginástica das escolas sueca e alemã. Considerando a aceitação e prática do ideal olímpico levou-o a partilhá-lo com Coubertin, de que resultou ter sido Jigoro Kano o 1.º membro japonês do CIO, onde permaneceu 30 anos.

Com este acto o que aparecia inicialmente como uma espécie de ginástica, o judo transformou-se num desporto, ao entrar nos J.O. de Tóquio, em 1964, como desporto de demonstração, passando a figurar nos Programas dos J.O. a partir de Munich, em 1972. Exactamente como a ginástica que também se desportivizou.

Finalizo com uma homenagem ao Japão, no momento crucial que atravessam, com a revelação do seu espírito humanista demonstrado nestes três quadros:

1.º Campeonato Internacional de Judo, 1956 – a frase mais ouvida entre os judocas japoneses era: “não magoem os estrangeiros”.
2.º Campeonato Internacional de Judo, em 1958 – a frase entre os judocas japoneses foi: “cuidado com as estrangeiros”.
3.º Campeonato Internacional de Judo, em 1961 – a frase passou a ser: “não percam com os estrangeiros”.

Cordialmente

Armando Inocentes disse...

Caro João Boaventura:

Antes de mais obrigado pela achega!

Claro que também nós tivemos as nossas "artes marciais ocidentais" - a justa e o torneio são a prova desportivizada disso. Agora temos a Esgrima Lusitana.

Mas os contextos históricos e culturais foram - e continuam a ser - muito diferentes. E as mentalidades também...

Mas actualmente fará sentido falar em arte marcial? Ou em desporto de combate?

Um abraço

joão boaventura disse...

No blog de Fernando Tenreiro, "O Desporto e a sua Economia", sugiro uma leitura muito oportuna ao post A revisão da República Portuguesa pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, com acessibilidade ao e-book "A Constituição Revista", e onde o Desporto também merece relevância nalguns autores, para a mutação de muitas disposições que se afiguram ultrapassadas.

Como este blog trata de assuntos que ao desporto interessam, tal como este CD, não seria despiciendo uma consulta ao de Fernando Tenreiro, com inúmeros e actuais pontos de vista sobre a matéria, considerando que a problemática desportiva tem, a partir do novo blog, um campo aberto de discussão útil e oportuna.

Cordialmente

joão boaventura disse...

Caro Armando Inocentes

Relativamente aos contextos históricos e culturais foram, de facto,diferentes, mas não continuam a sê-lo, por força da globalização e difusão do conhecimento desportivo ocidentais, em diferentes eventos e épocas, a partir de meados do séc. XIX (1868), data em que o intercâmbio com a Europa e a América se incrementam.

O primeiro ocorreu com as três missões militares francesas encarregadas de ministrarem instrução militar aos japoneses, em 1867, 1872 e 1884, introduzindo a ginástica sueca, a esgrima nas três armas e o tiro. De onde resultou o próprio governo japonês mandar publicar o primeiro livro de educação física, decretando a aplicação obrigatória da ginástica sueca no ensino primário.

O segundo, em 1868, várias missões protestantes americanas introduziram algumas práticas ocidentais, e em 1873 o inglês Alexander Cameron Sim, funda en Kobe, o Kobe Regatta Athletic Club, e difunde o atletismo, o beisebol, o futebol, o esqui, o golf, o remo, a patinagem do gelo, e as corridas de cavalos, que tiveram uma grande aceitação nas escolas e universidades, pela novidade O historiador desportivo Carl Diem considerou que em 1880 já havia, em Tóquio e Osaka uma vida desportiva ocidental intensa.

Na I Guerra Mundial, em Novembro de 1914, na batalha travada na fortaleza de Tsingtao, os japoneses aprisionaram perto de 4700 soldados alemães que foram enviados par 6 campos de concentração, onde ocupavam o tempo na prática da ginástica alemã, no atletismo, , no bowling, na esgrima, no futebol, halterofilismo, luta, natação e ténis. Como os prisioneiros tinham liberdade de circulação a aproximação com a população local arrastou a mesma à prática desportiva. AJapan Butoka Association-Tokushima Branch, que funcionava como uma subdelegação da Associação Japonesa de Artes Marciais, acabou por contratar alguns prisioneiros para que transmitissem os seus conhecimentos sobre o boxe, a esgrima e a luta.

Desde 1880 tem predominado o beisebol que conta com o campeonato escolar, seguindo-se, em 1915. o campeonato universitário, e actualmente é a modalidade que conta com mais praticantes, seguida do Voleibol, do Ténis de Mesa, do Paddle Ténis e do Basquetebol, em 6.º lugar o judo, seguido do atletismo, e do Kendo. O Sumo aparece em 22.º lugar. São dados colhidos nos finais do século XX. Num inquérito realizado na população, em 1979, sobre quais as modalidades praticadas, a ordem é esclarecedora: ginástica, jogos de bola, natação, marcha, softball, outras. Perguntado ainda a outras pessoas quais as preferidas para praticar, a ordem esclarece: ginástica, jogos de bola, marcha, natação, voleibol.

(continua)

joão boaventura disse...

(conclusão)

Em 1989, as artes marciais mais praticadas no Japão eram o judo, o kendo e o karate, mas figuravam em 18-º lugar, quanto ao número de praticantes, depois de 17 modalidades ocidentais.

É verdade que durante muito tempo houve uma aversão muito grande, por parte dos japoneses, em transformar as artes marciais em actividades desportivas competitivas, relutância vencida pelo desejo de participarem nos Jogos Olímpicos., o que os levou a adoptarem o modelo ocidental.

Quanto à designação de artes marciais, como explicou Jogoro Kano hão faz sentido nenhum hoje em dia, a não ser como uma etiqueta detrás da qual nos orienta de imediato para as práticas tradicionais orientais. O facto de o ocidente ter aderido de imediato a ela se deve à novidade, a certo exoterismo que parecia dimanar, à auréola de mistério. Os ocidentais olharam para as artes tradicionais orientais exactamente como os orientais olharam para as artes desportivas ocidentais, a novidade, o exoterismo, o mistério de coisa nunca vista antes.

Quando muito talvez considerar que as ditas artes marciais se inserem na lógica do duelo dos desportos individuais, a saber: luta, judo, boxe, karate, florete, kendo, badminton, ténis. Esta ordem não é arbitrária, obedece ao critério de aumento de espaço de interacção individual que é reduzido na luta e vai aumentando até chegar ao ténis. Isto para dizer que a área desportiva da luta é a mais pequena, i. é, que o contacto corpo a corpo faz parte das regras, e vai aumentando até chegar ao ténis, onde a distância entre os contendores é maior, por força da rede.

Cordialmente

Luís Leite disse...

Com João Boaventura aprendo sempre qualquer coisa.
É bom que seja assim.
Quanto ao interesse pelo Desporto no Japão é muito significativo.
A modalidade que interessa mais aos japoneses é claramente o beisebol (baseball), que tem um papel socio-económico semelhante ao futebol em Portugal.
No entanto, o futebol (football association) não está certamente entre as 15 modalidades mais praticadas, nem desperta um interesse prioritário, antes secundário, tal como em quase toda a Ásia.
As modalidades de combate (ou artes marciais) têm, de facto, um enquadramento bastante diferente, com um espírito muito próprio, baseado no tradicionalismo, tão importante para os japoneses.
Quem já passou algumas semanas no Japão, apercebe-se facilmente do que acabo de evidenciar.

Armando Inocentes disse...

Caro João Boaventura:

Temos debate e começa-se a levantar o véu...

"Quanto à designação de artes marciais, como explicou Jogoro Kano hão faz sentido nenhum hoje em dia, a não ser como uma etiqueta detrás da qual nos orienta de imediato para as práticas tradicionais orientais."

Começamos a avançar - logo podemos começar a pôr de parte a designação "artes marciais"...

E deveremos passar à denominação "desportos de combate"?

Na segunda parte deste post apresentarei as minhas conclusões.

Obrigado e um grande abraço

Armando Inocentes disse...

Obrigado João Boaventura.

Aumentei os meus conhecimentos, e muito, apesar de quase 38 anos de Karaté e 30 de treinador... mas atenção a uma coisa: a mentalidade japonesa continua a ser muito diferente da mentalidade ocidental, basta viverem numa sociedade extremamente hierarquizada e com espírito de sacrifício e de solidadriedade (vejamos os exemplos próximos). Um dia haveremos de nos encontrar para debatermos todos estes aspectos.

Já sentia a falta de Luís Leite e ainda bem que aparece, pois diz uma coisa que é essencial e que nos vai obrigar a esclarecer ideias:

"As modalidades de combate (ou artes marciais) têm, de facto, um enquadramento bastante diferente, com um espírito muito próprio, baseado no tradicionalismo, tão importante para os japoneses."

O cerne da questão é este: o Karaté é uma arte Marcial? Ou é um desporto de combate? Ou deverá ser classificado de outro modo?

Obrigado a todos os participantes...

joão boaventura disse...

Caros amigos

De facto, relativamente ao espírito e à visão do mundo dos japoneses, há alguma similitude com as "good manners" da aristocracia inglesa ou os ademanes das antigas cortes europeias.

Mas convém referir que essa espiritualidade que dimana dos japoneses não é prática exclusiva das artes marciais, antes parece inculcada milenarmente desde o berço civilizacional nipónico. Basta assistir ao movimento reverencial de saudação, de assentimento, de despedida, ao inclinarem o corpo nas referidas situações da vida corrente.

Quando fui apresentar um trabalho num congresso sobre história desportiva, em Kobe, aconteceu-me esta coisa estranha. Ao sair do hotel para meter uma carta no correio perguntei ao primeiro transeunte onde era o post office, que fez uma reverência como se agradecesse tê-lo interpelado, e com gestos simples deu-me a entender não ter percebido, ao que lhe mostrei o envelope e apontei o sítio do selo. Abriu-se-lhe o sorriso com várias vénias e com gestos indicou-me para o seguir, até chegar ao edifício dos correios. Agradeci e retribuiu com vénia.

Qual não foi o meu espanto quando à saída deparei com o meu guia a solicitar gestualmente que o seguisse. E só parou para me dar a entender que foi ali que o interpelei, porque considerou que, como estrangeiro, eu não saberia voltar ao ponto de encontro. Despediu-se com muitas vénias e retirou-se de imediato.

Portanto há, no povo japonês, não apenas uma cultura que se configurou em civilização, se entranhou nele e se manifesta em todos os actos, eventos e, inevitavelmente, nas artes marciais. Isto, para dizer que as vénias, antes e depois dos combates, não são exclusivas das artes marciais. Fazem parte do corpus civilizacional nipónico em todas as circunstâncias da vida corrente.

Para não alongar mais o texto, e porque o recente tsunami no Japão transporta com ele o retrato de um povo, um jornalista da CNN, Jack Cafferty, disse que “enquanto o Japão conta os mortos (quase 17 mil, segundo as últimas estimativas oficiais) e eleva de quatro para cinco o nível de alerta nuclear, já a dois níveis do que se atingiu em Chernobyl, e tendo em conta a escassez de comida e a incrível destruição, incluindo em Tóquio, por que razão não estão a ocorrer episódios de pilhagens e vandalismo no Japão?”.

Cafferty “estabelece um paralelo com o que sucedeu no seu próprio país depois da passagem devastadora do furacão Katrina e cita um colega, Ed West, do Telegraph.
West escreveu uma crónica na qual se confessava estupefacto pela reacção ordeira do povo japonês ao terramoto e ao tsunami, e do sentimento de solidariedade que encontrou um pouco por todo o lado”.

“As cadeias de supermercado baixaram drasticamente os preços dos produtos assim que ficou clara a dimensão da catástrofe”, conta Ed West “vendedores de bebidas começaram a distribui-las gratuitamente, com a justificação de que todos trabalhavam para assegurar a sobrevivência de todos”.

Cafferty adianta uma explicação: “os japoneses possuem um código moral tão elevado que se mantém intacto mesmo nas horas mais sombrias, mesmo quando só existe destruição em redor.”

É este espírito, esta outra visão do mundo, que está implícito nas artes marciais japonesas, e que nenhum outro povo praticante das artes marciais, poderá alguma vez adquirir ou transportar consigo.

Um abraço cordial

Luís Leite disse...

O que mais me impressionou no Japão foi o "respeito" pelo "outro" e o sentido de responsabilidade de cada pessoa, que sabe exactamente qual o seu papel numa sociedade hiper-organizada e hiper-hierarquizada.
Os japoneses, quando estão constipados (ou doentes) usam naturalmente uma máscara de hospital, para não contaminarem os outros.
O exagero nas vénias, ridículo para um europeu, é um ritual absolutamente indispensável na sociedade japonesa, para mostrar respeito pelo "outro".
Poderia contar aqui "estórias" incríveis e risíveis sobre a dificuldade de comunicar com os japoneses. Não tanto pela língua, apesar de eles não falarem nada a não ser inglês e só algumas pessoas, mas pela maneira diferente de encarar os assuntos.
Enquanto nós somos desenrascados, eles limitam-se a cumprir a sua função ritualizada e não fazem nada que não tenha sido anteriormente previsto.
Por isso, como se viu agora com o terramoto, eles têm tudo previsto enão se sentem surpreendidos.
O pior é quando algo não estava previsto e acontece... como aconteceu com a Central Nuclear de Fukushima.
Aí, ficam desorientados.
O japonês médio é previsível, responsável e organizado.

Fernando Tenreiro disse...

Agradeço ao João Boaventura a promoção que tem feito do blogue 'o desporto e a sua economia'


As coisas no desporto e no país estão a passar imensamente depressa e para compreender o sentido dessas coisas, outras são deixadas para trás


O debate sobre as artes marciais surge-me interessante embora a minha lupa económica me sustente que a definição de desporto é o nome que melhor colhe a racionalidade do processo de produção do desporto

Essa característica, que os economistas usam na Europa, não impede que outras análises e discussões conceptuais sejam feitas e mantidas como a do segmento das artes marciais ou de desporto de combate

Estas segmentações são úteis por distinguirem comportamentos de agentes como a distinção entre amador e profissional ou individual ou colectivo, para dar apenas dois segmentos possíveis

Bom debate o Vosso

Armando Inocentes disse...

João Boaventura e Luís Leite demonstraram que a mentalidade e a cultura do povo japonês é completamente diferente da nossa.

O que se reflecte nos comportamentos, na sua maneira de ser e de fazer, assim como na sua sociedade.

Obrigado e um abraço aos dois.

Ai se acontecesse em Portugal o que tem acontecido no Japão!...

Teremos a segunda parte do meu post a seguir e espero continuarmos este profícuo debate...

comprar carabinas online disse...

Considero que esta atividade tem as duas vertentes presentes na sua génese e na sua prática.