segunda-feira, 11 de abril de 2011

O direito circulatório

Não sei o que aconteceu ao anúncio da eventual redução do IVA no golfe. A inscrição em qualquer prova ou manifestação desportiva de qualquer modalidade desportiva já está à taxa mínima. Pelo que basta alguma criatividade semântica. Não discuto a bondade ou demérito da medida. Outros já o fizeram. Tão pouco o enquadramento fiscal sobre as diferentes dimensões das práticas desportivas. O que estava. O que mudou. E o que passou a estar outra vez. Não sei de resto, porque nunca vi publicado, qual é o impacto na arrecadação fiscal destas constantes mudanças. E se compensam. Entre o que se ganha “fiscalmente” e o que eventualmente se perde na promoção do consumo deste tipo de actividades. Mas sei uma coisa: qualquer alteração ao regime do IVA carece de um decisão normativa equivalente à natureza do diploma original. Não é um problema interpretativo. Não é uma decisão que caiba à administração fiscal. Só pode ser através de uma decisão política.


Os principais normativos que enquadram o regime fiscal português têm origem em diplomas do governo e complementarmente de medidas contidas nas diferentes leis do orçamento de Estado (Assembleia da República). E por aqui devíamos ficar. E nos casos de litigância pela jurisprudência dos tribunais administrativos e fiscais. Mas não é assim. Nem na forma, nem no conteúdo.


No conteúdo e paralelamente às instâncias a quem, num estado de direito, cabe produzir os respectivos diplomas legais temos, no caso nacional, a administração fiscal. Que, e bem, esclarece sobre a aplicação das leis. Mas que, e mal, ao fazê-lo, cria, em algumas situações, verdadeiras alterações aos diplomas originais. Para isso socorre-se dos célebres oficios-circulados, instrumento por excelência do poder da administração fiscal sobre os decisores políticos. Um poder ílicito. Porque se transformaram numa nova fonte de direito: o direito circulatório.


E passamos à forma. O direito é não uma ciência exacta. Carece de interpretação. E tem especialistas para esse fim. Que não é manifestamente o meu caso. Sou um consumidor e um utilizador do direito fiscal. Que por razões profissionais já teve que inquirir os serviços fiscais ou consultar documentos deles oriundo. E que vive o drama de à leitura do terceiro parágrafo ter de voltar atrás para tentar perceber o que está escrito. É pior que ler Kant ou Heidegger. Linguagem hermética, remissão para outros diplomas, predominância do jargão técnico e uma infindável nomenclatura. Ficamos com a sensação que somos uma espécie de letrados ignorantes. Lemos uma vez, duas vezes e desistimos. E fica-se com a vontade de mandar aquela parte as figurinhas que ignoram a missão de um serviço público. A administração fiscal não escreve preocupada em que os cidadãos ou que os serviços percebam o que escrevem. Escrevem numa verborreia técnica que revela soberba, ignorância e falta de respeito. Se cada um de nós no exercício das nossas obrigações profissionais só utilizasse a terminologia das respectivas especialidades a comunicação era impossível. Ora quem à frente de um serviço público tem a obrigação de prestar informações tem também o dever de o fazer de modo a que seja entendido. Sei que é pedir de mais face ao estado de bovinidade em que muita da administração pública caíu. E sei o que é poder nas mãos de burocratas e de pequenos tiranetes. Gente que vive num estado democrático e que trata ou outros como seus súbditos e não como aqueles a quem cabe servir. Tantos cursos e acções de formação, tanto dinheiro que o país gasta a formar este pessoal e que bem poderia ser aproveitado a ensinar que estão ali para servir as pessoas e não para as ignorar ou desvalorizar. E que deveriam ser sujeitas a um teste semântico que lhes permitisse distinguir a diferença entre a prima do mestre – de - obras e a obra prima do mestre. Podem ir à missa e saber benzer-se mas no reino dos céus não encontrarão a porta franqueada.


Este não é um problema do governo X ou Y.É uma cultura que se instalou na máquina do Estado. É uma verdadeira “escola de pensamento” oficial. De depredadores! Sem sensibilidade, sem cultura democrática e sem perceberam uma linha dos direitos constitucionais. E sem paciência para escutar criticas. Quantas decisões com incidência fiscal no sistema das práticas desportivas são tomadas sem ouvir os responsáveis governamentais da área do desporto? Quanta ignorância existe sobre o modo como socialmente a actividade desportiva deve ser tributada?

9 comentários:

MIGUEL BETTENCOURT NEVES disse...

Bom dia,
O prof. Constantino diz que "A inscrição em qualquer prova ou manifestação desportiva de qualquer modalidade desportiva já está à taxa mínima" ??? contudo parece-me ser 1 engano de interpretação do oficio circulado 30124.
Pois o que está à taxa mínima é apenas a assistência a eventos e não a participação desportiva neles... Assistir a uma prova de BTT custa 6% de iva... mas se quiser participar já são 23%!
Este foi o esclarecimento que obtive das Finanças... mas se tiver interpretação melhor agradeço a informação.
Estarei enganado? convinha sabermos todos com o que contamos em termos fiscais...
Cumprimentos,

josé manuel constantino disse...

Caro Miguel,
A taxa mínima de acordo com a lei aprovada na Assembleia da Republica aplica-se a “Espectáculos, provas e manifestações desportivas”.Dito assim significa que espectaculo é uma coisa ,prova é outra e manifestação desportiva é outra ainda.Imagine a administração fiscal a definir o conteúdo de cada um deles....O que é uma prova desportiva? É um evento em quem nele participa paga um valor sobre o qual incide o IVA à taxa mínima .O que é uma manifestação desportiva? Ignoro o que o legislador entende por tal e em que difere de uma prova desportiva. É algo “desportivo” mas sem intuitos competitivo e meramente demonstrativo? Não sei. Um espectáculo é a respectiva assistência como diz e bem.
A inscrição da corrida na Ponte é taxada a que valor? E uma caminhada? E a corrida Contra o Cancro?E participar num aprova de cicloturismo?
O que pretendo chamar atenção é para o poder arbitrário da administração fiscal que entende o que, por vez, a própria lei não permite entender e que se constituiu no país como um poder acima do poder legislativo. A administração fiscal não tem competências legislativas. E é bom que se saiba de que muito do que faz é abusivo e ilegal.Incluindo o que escreve nos oficios circulados. Lutar com este estado de coisas não é fácil .E custa muito dinheiro recorrer aos tribunais.. Mas não há outra saída enquanto o poder legislativo e o poder fiscalizador da Assembleia da República deixarem que pequenos poderes administrativos se sobreponham aos poderes legítimos no plano legislativo.
Obrigado pela sua questão.

Luís Leite disse...

Concordo com o texto de JMC na generalidade.
Na especialidade também concordo, mas sou um zero à esquerda em Direito, como o nosso legislador anónimo bem sabe...

MIGUEL BETTENCOURT NEVES disse...

Caro Prof. JMC,
Obrigado pelo seu esclarecimento... mas posto isto continuo sem saber que taxa de iva se deve cobrar pela inscrição numa prova desportiva (por ex. numa prova de BTT)...as finanças defensivamente se a questão lhes for submetida respondem logo a 23%, mas como a lei está redigida a mim parece-me que cabem nesse saco todas as participações competitivas sejam elas de assistência a espectáculo ou à própria participação... inclusivamente o argumento do iva no golfe passar a 6% sob pretexto de ser considerada prova desportiva, vem abrir essa perspectiva da interpretação... eu que organizo provas desportivas e estou a facturar a 23%, estou provavelmente a ser demasiado ingénuo...gostaria de ter + certezas sobre a interpretação da lei... já falei com o seu colega de blog JM Meirim, mas o próprio tem as mesmas dúvidas que eu...

josé manuel constantino disse...

Compreendo perfeitamente o desconforto/insegurança que o Miguel sente quanto a questões que dada a forma como estão plasmadas na lei permitem mais do que uma leitura. E, a leitura da administração fiscal é,por norma, aquela que lhe permite um maior arrecadação fiscal. A administração fiscal conta também com as dificuldades de recurso e o risco de quem reclama, caso o recurso não seja atendível de sofrer o acréscimo de coimas. juros compensatórios para além dos valores considerados em falta.
Nas organizações a que estou profissionalmente ligado o valor que cobramos de Inscrição/participação em provas/ manifestações desportivas é de 6%.Nos restantes serviços desportivos 23%;
Uma observação final: não afirmei que o golfe pode passar a 6%.Digo isso sim que tudo o que no golfe são participações em torneios e provas que tem uma taxa de inscrição o valor a cobrar deve ser esse1Mas digo no golfe como podia dizer no atletismo, nas caminhadas ou no futebol.

Grato.

Miguel Bettencourt Neves disse...

Obrigado pela sua resposta Professor.

joão boaventura disse...

No blog de Fernando Tenreiro, "O Desporto e a sua Economia", sugiro uma leitura muito oportuna ao post A revisão da República Portuguesa pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, com acessibilidade ao e-book "A Constituição Revista", e onde o Desporto também merece relevância nalguns autores, para a mutação de muitas disposições que se afiguram ultrapassadas.

Como este blog trata de assuntos que ao desporto interessam, tal como este CD, não seria despiciendo uma consulta ao de Fernando Tenreiro, com inúmeros e actuais pontos de vista sobre a matéria, considerando que a problemática desportiva tem, a partir do novo blog, um campo aberto de discussão útil e oportuna.

Cordialmente

MIGUEL BETTENCOURT NEVES disse...

Caro Prof.
ainda sobre o assunto que discutimos sobre o iva a 6% nas provas desportivas, envio-lhe o link que confirma o mesmo entendimento da PWC que o prof. referiu.
Sendo a PWC uma das mais prestgiadas Sociedades de Revisores Oficias de Contas, penso que é um argmento esclarecedor.
http://www.pwc.com/pt/pt/pwcinforfisco/index.jhtml

Muito obrigado pelos esclarecimentos,
Cumprimentos

josé manuel constantino disse...

Grato.