sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Separemos as águas

A blasfémia é um risco bem próximo para quem não exulte patrioticamente com as vitórias da selecção nacional de futebol. O que poderia até ser entendível, embora, no plano dos princípios, se tenha de respeitar quem se não sente representado pela selecção de todos nós. Mas o problema não termina aqui. É que não basta ficar feliz pelo sucesso. Importa estar de acordo com a cartilha dominante e subscrever as banalidades próprias das circunstâncias.
Contrariamente ao que Salazar advogava, não existe um modo único de defender a pátria. E de exultar com os seus êxitos. E o mesmo se aplica ao desporto em geral e ao futebol em particular. Aceitemos por isso a diversidade de modos como cada um vive os problemas do país, do desporto e do futebol.
O apuramento da selecção nacional de futebol para o Euro-2012 é um facto positivo para a modalidade e para o desporto nacional. Sê-lo-ia sempre qualquer que fosse a modalidade desportiva. Mas tem ainda maior significado tratando-se de uma modalidade de tão grande expressão competitiva mundial. Vitoria que simbolicamente acontece num contexto de dificuldades nacionais e em que tudo parece correr mal ao país. Para além disso o apuramento alcançado é bom para a federação respectiva, para os jogadores, treinador, dirigentes, agentes, patrocinadores, marcas e clubes a quem os jogadores pertencem. E nestes últimos as vantagens são até mais estrangeiras que nacionais.
Perante este sucesso há sempre o risco de o desvalorizar à luz dos incontornáveis problemas de sustentabilidade financeira com que vive a modalidade ou de canibalização desportiva que muitos atribuem ao futebol ou, em sentido inverso, de tudo esquecer em nome de algo que serviria para elevar a auto-estima dos portugueses, num momento de crise de confiança quanto ao futuro. Ambas são um erro.
Separemos as águas. O futebol não deve servir para diabolizar as nossas dificuldades, mas também não pode servir para as redimir. Uma vitória desportiva acrescenta crédito ao histórico desportivo do país. Mas não o prepara melhor para resolver os problemas que enfrenta.
É uma agressão às mais elementares regras da inteligência quando governantes, que deviam dar um exemplo de sobriedade e rigor, fazem afirmações como esta a propósito da selecção nacional de futebol: “A sociedade tem que ver aqui um exemplo de sucesso, de gente que faz com que o nome do nosso país seja conhecido”. A identificação das selecções e dos seus resultados com qualquer desígnio nacional é um ritual imprudente e sem consistência. É uma tentação política. Mas não é o modo sério e responsável de enfrentar os dilacerantes problemas das sociedades actuais. O futebol não é exemplo para erguer um país. Os exemplos dos profissionais de futebol que representam uma selecção nacional o que valem num país em que há gente que não consegue trabalho e quem o consegue vê os seus rendimentos capturados por uma brutalidade fiscal sem paralelo na Europa? É exemplo quem se faz pagar para treinar, que recebe para jogar e ainda tem remunerações acessórias em caso de cumprimento de objectivos? Que sector profissional trata assim os seus trabalhadores? Ou pensa o governo que os trabalhadores portugueses devem transformar em caderno reivindicativo as condições laborais dos seleccionados e que entendem ser um exemplo a seguir?
Deixemos o sucesso desportivo entregue aos seus protagonistas. Saudemos a sua competência. Fiquemos satisfeitos com as suas vitórias E tal como nos regozijamos com o reconhecimento internacional da literatura de Saramago, da arquitectura de Siza ou as descobertas de Damásio, exultemos com os golos de Ronaldo. Mas resistamos a aproveitar a boleia do sucesso desportivo em nome de uma qualquer legitimidade política. Não caiamos na demagogia das identificações simbólicas (do tipo, tal como a selecção nacional com vontade e trabalho o sucesso está ao nosso alcance…) Porque é um aviltamento da política. Porque é pura demagogia. Porque é uma subtil manipulação das emoções colectivas. E porque é uma falta de respeito a quem luta e trabalha e não vence.

4 comentários:

Anónimo disse...

Celebrei a qualificação de Portugal para o euro 2012 com pouco entusiasmo, simplesmente porque é apenas uma vitória num jogo de futebol...
Colocar a população a praticar desporto com regularidade com taxas superiores a 50% ou utilizar o desporto como mecanismo de integração social em populações desfavorecidas ou o crescimento da industria do desporto, isso sim seriam grandes vitórias ... esta é apenas mais uma pequena vitória... com mérito, mas sem grandes resultados desportivos práticos daquilo que se pode esperar do desporto... foi uma boa vitória num jogo de futebol, nada mais do que isso. Serve para motivar os jovens, tanto melhor, verdade seja dita. Mas devemos sonhar mais alto e querer muito mais do desporto na sociedade que apenas os resultados de elite... continuamos a ver o filme ao contrário! e enquanto assim não for...tudo será igual.
Tenho ouvido frases do estilo "o que nos vai valendo como País é a seleção nacional"... vai valendo de quê??? ... acorda Portugal, foi só 1 jogo e nada mudou ... o País ainda poderia ter ficado 8 milhões + rico com este jogo, mas ao invés apenas a FPF e os jogares lucraram com isso.

Anónimo disse...

Nos serviços informativos dos canais do serviço público de televisão e rádio "Selecção" significa "equipa de todos nós" e a palavra Futebol é omitida intencionalmente.

Não vá alguém pensar que existem outras Selecções Nacionais de outras modalidades desportivas, que, como sabemos não passam nem podem passar de curiosidades.

Num contexto de sistemática futebolização da população (um desígnio nacional em si mesmo), era suposto que, dispondo do melhor "jogador do mundo" e de vários outros dos mais bem pagos, conseguíssemos, ainda que na última oportunidade, a qualificação para uma fase final de um Campeonato da Europa.

Feito que difícil e raramente vamos conseguindo, muito esporadicamente, noutras modalidades com bola, acabando por ser mais ou menos esmagados.

Ainda para mais quando os adversários foram países com metade da nossa população (Noruega e Dinamarca) ou micro-estados com os pergaminhos de um Chipre e de uma Islândia, e finalmente de uma Bósnia devastada por uma guerra civil...

Não se compreendem, portanto, os hossanas que transformaram o "país da crise e da troika" num "país de sucesso e esperança" (futebolística).

Culturalmente, continuamos a ser um país maioritariamente de analfabetos.
Passou-se dos " analfabetos totais", com cultura rural, para os "analfabetos funcionais" com cultura suburbana, carregadinhos de diplomas inúteis e falaciosos, programados para o desemprego.

Mantém-se a percentagem de elites existente antes do 25 de Abril.
Neste triste contexto de imoralidade e corrupção impunes, em que os processos criminais se eternizam e os cíveis prescrevem, gastando o dobro do que produzimos, a caminho da miséria e sem rumo algum, estamos orgulhosos de quê?
De 2 ou 3 treinadores e de meia dúzia de jogadores de futebol?

joão boaventura disse...

Com ou sem o apoio do Estado o Desporto andou sempre à frente do pelotão do "trabalhar e fazer", enquanto o Estado se atrapalhou no "faz que anda mas não anda".

E foi o Desporto, representado pelo associativismo que despertou o Estado da sua letargia, elencando as necessidades básicas para que o Desporto pudesse acelerar.

E foi o Desporto, com o seu trabalho voluntário, gratuito e apaixonado, e com as suas gentes, dirigentes, atletas, e ainda com o apoio extraordinário da imprensa, que pressionaram Salazar a ir ao Terreiro do Paço, no dia 3 de Dezembro de 1933, declarar a toda a massa crítica do desporto que iria atender a todas as necessidades expostas no 1.º Congresso dos Clubes Desportivos, publicadas em "Os Sports", em 15.12.1933.

Como foi a mesma massa crítica do Desporto que obrigou o Estado a criar, passados 10 anos, mais precisamente, em 05.09.1942, a Direcção-Geral da Educação Física, Desportos e Saúde Escolar, e um ano depois, em 03.08.1943, a regulamentá-la.

Como se vê, o Estado anda de triciclo, e porque não tem pernas para andar mais depressa,dá cambalhotas de pernas para o ar.

Nesta matéria, o Desporto, desde a sua génese foi sempre um Mercedes, e o Estado, um triciclo.

E desde 1942 até 2011, já lá vão 70 anos, qual tem sido o empenho sobre o Desporto ? Demonstrar que não há dinheiro e, para reforçar essa ideia e inculcá-la bem na cabeça da massa crítica do desporto, e até para justificar um certo atraso sobre o que fazer com o Desporto, vão arranjando umas facturas do anterior IDP(fechadas à chave numa sala, para dar mais suspense) não pagas ainda, desenvolvendo o tema enfaticamente no "Público" de hoje, a pp 14, com o título "Caso das facturas leva Tribunal de Contas a avançar com auditoria", como se fosse caso virgem, quando historica e ciclicamente, desde a Monarquia Constitucional, o Estado tem sido um permanente relapso a juntar facturas por pagar.

Portanto, a especialidade do Estado é a produção de fumos bem empolados para que as pessoas da massa crítica do desporto esqueçam o fundamental e se concentrem nos fait divers. É uma das formas de andar de triciclo.

Aquelas facturinhas escondidas, não pagas, vão juntar-se às milhares de pródigas facturinhas em que o Estado é exímio, há já quase um século desde 1820, para atrasar pagamentos, porque de triciclo não se pode andar mais depressa.

Agora haverá a desculpa de uma estranha Troikineta impor um pedalar mais lento ainda, mas a massa crítica desportiva aprendeu com Fernando Pessoa: O Estado é uma sociedade secreta.

Portanto, caro Constantino, sejamos evangélicos e avivemos este lema:

Ao Estado (faz que faz) o que é do Estado, e ao Desporto (faz o que tem de fazer) o que é do Desporto.

Não há confusão possível.

Kaiser Soze disse...

bem...talvez a Selecção seja mais um retrato da nação porque se viu à rasca para entrar no Europeu apesar do grupo de coxos que lhe saiu e porque, quando empatou com uma equipa de 2ª (3ª) divisão europeia ninguém revelou amargura mas antes contentamento.

Se é um exemplo é um exemplo de que não devemos esperar assim tanto de Portugal e não um de excelência.