sábado, 16 de janeiro de 2010

Como sustentar políticas desportivas municipais em cenários políticos débeis?

A captura por interesses privados, o conluio da porta giratória, a gestão de uma agenda eleitoral que condiciona o vínculo com políticas duráveis e sustentáveis, são apenas alguns dos contributos que, em diferentes ópticas, as ciências económicas, sociológicas, jurídicas e de gestão avançaram para criticar a visão clássica da regulação e da produção de políticas públicas como um processo benévolo na prossecução do interesse geral. Ganhou corpo a ideia de que os actores de um sistema sociopolítico seriam maximizadores instantâneos de escolhas racionais num jogo de soma nula, fossem elas escolhas económicas ou políticas.

Se a isto juntarmos o padrão de valores que compõe a cultura cívica e política dos países do Sul da Europa, estão reunidos os condimentos que na grande maioria das vezes se avocam para criticar as falhas da governação e as disfuncionalidades que lhe aprisionam. As políticas desportivas, ou melhor, a sua ausência e fragilidade, são também elas analisadas neste prisma, por aqueles, poucos, que despendem o seu tempo a emergirem para lá da superficialidade com que o desporto é habitualmente abordado.

Importa, no entanto, ter presente que a produção política segue um trajecto mais complexo, não linear, dependente de contingências históricas e institucionais que a afastam da mera gestão de um mercado de oportunidades, ou de um guião sequencial de etapas que vão desde o diagnóstico à avaliação do impacto das políticas, passando pela sua negociação, produção e implementação. Isto é tanto mais notório quanto mais antigo é o Estado e o seu modelo de organização social.

Partilho – já aqui e noutros locais o escrevi – da ideia da inestimável importância das autarquias locais para o desenvolvimento desportivo do país, mas procuro também não criar ilusões sobre o seu quadro de acção. As edilidades, as autarquias locais, os municípios, têm a sua génese anterior à formação do próprio Estado em Portugal. Ao longo de séculos foram corpos administrativos cuja tarefa essencial se focava em resolver os problemas quotidianos das suas comunidades, administrar, taxar, recolher receitas na gestão do seu território e fazer cumprir as determinações de outros níveis do Reino e do Estado. Foram sempre entidades administrativas e não entidades políticas.

De acordo com um trabalho seminal sobre o sistema político local, uma elevadíssima percentagem dos recursos de uma autarquia estão focalizados na resolução de problemas imediatos (uma estrada que abate, uma canalização que rebenta, etc.) e em pequenas rotinas administrativas essenciais à sua actividade.

Ainda que constate o enorme desenvolvimento do poder local em Portugal com as mudanças após o 25 de Abril é pernicioso apagar todo um percurso histórico a montante - as suas virtualidades e debilidades - no que é hoje a acção de uma autarquia ao nível do desporto.

Assim, não é surpresa constatar que as tarefas de planeamento ainda assumam um papel irrelevante na política municipal, ou que os documentos estratégicos, quando existem, estejam à nascença, condicionados por opções políticas e apenas servem para encontrar suporte técnico que as ratifique e possam constituir-se como argumentos "sérios" e "credíveis" para negociar financiamentos públicos. É também sem surpresas que se assiste a opções políticas discricionárias - à margem de instrumentos de planeamento ou de qualquer critério de racionalidade - para aproveitar a oportunidade de um evento mediático, de uma permuta de um terreno, de um programa comunitário, ou apoiar um clube em suposta crise, sem que isso acrescente qualquer valor desportivo – antes pelo contrário -, ao município.

O "presidencialismo municipal" é uma herança forte de antanho que condiciona a arquitectura do poder, onde cada pelouro é visto como um feudo. A oposição é marginal à gestão quotidiana, limitando-se a algum ruído na esperança de que as coisas mudem daqui a quatro anos, debilitada pela debandada da renuncia dos mandatos dos primeiros elementos das suas listas, ou de compromissos constrangedores em torno de um pelouro com competências menores, de um cargo numa empresa municipal, ou do apoio municipal oportuno a um projecto da suas cores.

As fragilidades ao nível da cultura política passam também para o espectro da sociedade local, onde são raros os clubes, associações, escolas e agentes desportivos com uma visão que não se circunscreva ao seu estrito domínio de acção, fazendo ouvir a sua voz até ao limite onde os problemas do seu burgo serem pontualmente solucionados pela autarquia, quando a esta nem lhe competia intervir em inúmeras ocasiões. Este paroquialismo dificulta o sucesso de soluções como o conselho desportivo municipal, ensaiadas em várias autarquias, partindo do modelo francês.

Faz sentido falar nas autarquias, concretamente nos municípios, como entidades promotoras de políticas desportivas? Ou estamos apenas a falar de entidades administrativas com autonomia para gerirem um quadro delimitado de competências para o desporto no seu território?

É neste contexto que o técnico de desporto tem de intervir, é neste domínio que deve operar , saber posicionar-se e ser um actor promotor de mudança. Compreender como e onde a sua acção poderá ser um aporte de mais-valia para criar políticas desportivas municipais estáveis, num sistema marcadamente administrativo, com um legado enorme de caciquismo, e a dar os primeiros passos na aprendizagem da construção de políticas públicas sem as melhores referências, no que ao desporto concerne, de outros níveis da Administração.

Mas o caminho é longo não apenas para as autarquias. Também o é para muitos técnicos que chegam, e foi para muitos que acompanhei. As escolas de desporto, e não só, têm currículos que ignoram as noções básicas de gestão pública nos ciclos mais avançados de estudos superiores. Submetem os alunos ao catecismo do management, que tem décadas, mas não lhes fornece um código de leitura que permita valorizar a boa aplicação das inequívocas potencialidades dos instrumentos de gestão nesta realidade que tem séculos. Parece que olvidam que a Administração tem princípios, regras, valores seculares ao serviço de cidadãos, e não de simples clientes, os quais, em última instância se resumem numa palavra cuja concepção weberiana foi diabolizada – a burocracia. Parece que se esquecem de apontar o fracasso de soluções de "copy/paste", como as da Nova Gestão Pública, objecto de análise pelas mais diversas instituições que estudam o fenómeno administrativo. Parece que se esquecem que o sector empresarial público tem processos distintos de uma empresa privada… Neste cenário a obrigatoriedade do FORGEP surge como uma bênção para muita gente.

É tão fácil focalizar a atenção no poder político pelo estado das coisas, como é ignorar as responsabilidades de outros intervenientes quando se pretende evitar aprofundar respostas sobre qual a real responsabilidade de cada interveniente na produção de políticas públicas sustentáveis em contextos complexos.

Num país estruturalmente atrasado, vejo outros sectores mais empenhados nessa missão do que o desporto. E no desporto, não é, por certo, às autarquias, apesar dos problemas aqui sublinhados, que se deve apontar falta de empenho.

3 comentários:

Luís Leite disse...

O acertadíssimo texto de João Almeida remete para a questão aqui já muito discutida: a questão das elites.
Julgo que o problema, ao nível da Administração Pública em geral e da A. P. Local em particular, é um problema essencialmente "de regime".
Passo a explicar: como só é possível chegar a lugares de decisão política através dos partidos do costume (a independência dos recrutados independentes é muito condicionada ou relativa), o factor primordial de escolha não é a competência (conhecimento teórico mas também prático), mas sim a posição na hierarquia, dentro do partido.
Deste modo, no poder faltam elites (as não alinhadas) e abundam figuras intelectualmente medianas, a quem interessa, acima de tudo, a manutenção no poder a qualquer preço e apresentar obra fisicamente visível, de preferência muito visível. Não é sequer "assunto" para que vai servir ou quem paga a manutenção de uma determinada obra, se tem ou não viabilidade económica e retorno ao nível da utilidade pública. Para não falar da corrupção quase generalizada e institucionalizada...
Nas autarquias, a distribuição de pelouros é, na maioria dos casos, aleatória, importando apenas dar resposta ao peso relativo dos resultados eleitorais.
É assim a partidocracia, uma forma distorcida de democracia que vinga em Portugal cada vez com mais força.
Um regime que prefere medíocres alinhados e dispensa elites não comprometidas.
Com este quadro sócio-cultural, por muito que se pretenda (?) formar e recorrer a técnicos qualificados, que apresentem estratégias adequadas a médio e longo prazo, prevalece a decisão errada, mas politicamente legítima, do autarca medíocre.

João Almeida disse...

Caro Luis Leite

O post pretende alertar para o facto de que estes problemas parecem reproduzir-se e alastrar bem para lá da esfera de decisão política.

Parece-me que existe um leque cada vez maior de actores desportivos e para-desportivos que operam com as autarquias que se conformam com tudo aquilo que você aqui bem comenta, e investem o seu tempo em criarem estratégias de sucesso para se movimentarem e recolherem dividendos para as suas organizações neste terreno movediço, sem que isso contribua para melhor qualidade do desporto nos municípios ou nas suas organizações.

Quando os indicadores de qualidade da vida democrática no país são precários torna-se praticamente impossível surgirem elites nestes cenários políticos débeis. Isto é corroborado por qualquer manual de Sociologia Política.

Quando os destinatários das supostas politicas (?) se conformam a navegar neste mar inquinado não fazem mais do que reproduzir no seu contexto de acção as disfuncionalidades sistémicas.

Em sectores com uma enorme dependência da Administração isso é fatal.

Luís Leite disse...

Caro João Almeida,

Concordo absolutamente com as suas observações: há organizações a aproveitarem-se do estado de degradação de muita Administração Pública.