sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Justiça e bom senso

Salomão (1009 a 922 a.C.), terceiro rei de Israel, teve um reinado feliz e longo (mais de 40 anos), marcado pela sabedoria, pela paz e prosperidade. Isto seria já o bastante para se ter dele uma memória moldada pelo apreço e respeito. Porém aquilo que mais o notabilizou e nos faz pronunciar o seu nome com admiração e reconhecimento é o modo de fazer justiça que ele instituiu: a prática do bom senso.
Desde muito cedo, nos bancos da escola primária e da família, aprendemos a associar o nome de Salomão à arte de fazer justiça. Aprendemos que, para tanto, muito mais sólido do que o amparo da letra do texto legal é a interpretação deste segundo as balizas do bom senso. Este não se adquire automaticamente a folhear e decorar os tratados de direito ou a contar um rosário das mais variadas anotações e citações que possam ser chamadas à colação. Mais ainda, não é coisa que Coimbra transmita ou garanta mediante a outorga de um diploma, por mais meritório e doirado que este seja.
O bom senso não cai do céu estrelado, não aparece espontaneamente, não surge da noite para o dia, nem tampouco é emblema que se possa comprar e pôr na lapela do casaco; leva tempo a despontar e amadurecer, num árduo e extenso caminho de reflexão e confrontação com as experiências e vivências feitas. Aprende-se no decurso de uma vida pautada pelo exercício apurado e aturado da rectidão e lhaneza do carácter e pela vigilância das inquietudes da consciência, habitando paredes meias com o cultivo afincado e suado da ética, com a procura persistente da sabedoria e a apropriação paulatina das virtudes humanas.
Para estar apto a praticar a justiça não chega, portanto, conhecer decretos, normas e regulamentos, por grosso e atacado; é preciso dar passos morosos numa paciente e alongada viagem que nos abeire do saber, que depure este da tentação de poder e lhe confira o sabor do apego à palavra, à elevação e erudição estéticas, próprias de quem é sábio. Por isso mesmo não é coisa de novatos ou rapazolas, apressados ou lampeiros, inteligentes ou apenas espertos, oportunos ou só oportunistas, de verbo pronto e fácil, demagogos ou populistas, desejosos de se erguerem em bicos de pés e atingirem a ribalta. É assunto e obra de gente com credibilidade sobejamente comprovada, que não usa a função como trampolim para outros voos mais apetecíveis; antes se compraz com a subida honra e o alto sentido de responsabilidade cívica e moral que o cargo comporta e irradia.
A justiça ‘justa’ é, por definição e essência, jurisprudente; não decorre do alarde ostensivo e da exibição gratuita de uma ampla panóplia de conhecimentos e fundamentações. Nem anda à cata, a todo o custo, de efeitos, elogios e louros mediáticos e da reluzente e sequente notoriedade. Vive do recato, da sobriedade e discrição. Ciente de que não sabe tudo e de que não é possível descartar a dúvida e a incerteza, está casada, em comunhão de bens, com a serenidade, a temperança, a prudência e a claridade no tocante às suas consequências. É sapiencial e não exibicional; é humanista e não justicialista.
Nos últimos dias tenho-me lembrado muito do rei Salomão. Constato que o seu legado não desapareceu na consideração do cidadão comum, amante do bem e da verdade; mas não se vislumbra qualquer resquício dele nas palavras e nos actos de alguns protagonistas do campo da justiça. O desvario anda à solta, como se quisesse retirar do livro das lições da vida aquela que coloca o bom senso num lugar de primazia.
Afinal o ditado popular tem inteira justificação e razão: o que o berço não dá Coimbra não acrescenta. Sim, os pais é que são os grandes professores em termos de orientações, princípios e valores norteadores da vida e da conduta em todos os domínios da actividade. Quem não recebe lições de humildade no berço e aconchego familiares, dificilmente ganhará apego aos correspondentes ensinamentos, parâmetros e bitolas nos bancos da escola e da universidade.
Porventura é por isso que a observância do legado de Salomão está a fazer tanta falta nas instâncias administradoras da justiça: nas centrais e periféricas, incluindo a comissão disciplinar do futebol. O bom senso ausentou-se, faz demasiado tempo, para parte incerta; era já altura de regressar.

1 comentário:

PB Pereira disse...

Muito bem. Com peso, conta e medida.
Pedro Barros Pereira