quarta-feira, 16 de junho de 2010

Dos defeitos do corpo

Tem tanta pressa o corpo! E já passou, quando um de nós ou quando o amor chegou.

Jorge de Sena, 1919-1978

As férias na praia já não são o que eram. Pouco a pouco, a praia vai perdendo clientes, como resultado de mutações no grau de satisfação com o corpo. Vou procurar explicar-me melhor.
A praia foi durante muito tempo um lugar da liturgia do encontro e da admiração, facilitador de integração e interacção social. Um palco privilegiado de exibição do macho latino, de ombros largos, de musculatura hipertrofiada e de órgãos genitais a porem à prova a elasticidade dos calções. E foi ainda a passarela de desfile das louraças, feitas de água oxigenada e com peitos confeccionados sem ajuda de silicone, que nos deixavam com cara de basbaque e a escorrer baba e ranho. No areal de atracções e aproximações travavam-se cotejos e conhecimentos e iniciavam-se namoros que favoreceram o incremento dos correios e telefones e, não raras vezes, acabaram em casamentos.

Hoje já não é mais assim. A estupidez ganhou novos disfarces e versões e não são apenas as loiras que têm falta de neurónios. Os padrões de beleza correntes, patrocinados pela moda e pela publicidade, assumem cada vez mais a função de marcadores sócio-culturais, tornando-se, em medida crescente, agentes de discriminação e de empobrecimento do contacto social. Ao imporem e universalizarem o ideal da beleza esguia, para não dizer escanzelada, famélica e esquelética, originam uma onda de insatisfação e de descontentamento em face dos desvios das bitolas em voga. Ou seja, levam as pessoas a descobrir defeitos no seu corpo e a ficar seriamente afectadas com isso, a ponto de desenvolverem sentimentos de culpa, de inferioridade e vergonha.
Talvez seja também por isso que a frequência da praia vai perdendo atracção. Às razões e advertências de ordem ambiental somam-se agora receios e complexos de natureza psicológica a recomendarem restrições na exposição da nudez corporal, sobretudo quando esta se desdobra em abundâncias e protuberâncias adiposas e é pobre em cabedais, tecidos e courelas musculares. A hora parece ser de esconder o corpo e não tanto de o mostrar, pelo menos quando antes não se procurou fazê-lo ou modificá-lo segundo a severidade das exigências vigentes.

A gordura está nitidamente fora de moda e encontra-se diabolizada. Os modelos de outrora não resistiram ao avanço dos tempos. O conceito de santidade, representado nas estátuas de um Buda deitado ou sentado com banhas de bonomia e docilidade, há muito que foi suplantado por exercícios castigadores e expiadores das culpas do corpo, vinculados ao culto da ascese corporal. E o lema de que "gordura é formosura", bem expresso nos quadros de pintores famosos (como a Madona de Miguel Ângelo), não vigora mais; valeu outrora e apenas para noivos incautos e gananciosos e ficou circunscrito a tempos de míngua, miséria e fome (que estão de volta).
Perante isto nem sei bem o que lhe diga, caro leitor. Eu continuo a ir à praia, embora já não o faça com o fervor, com o alvoroço e com a frequência de antigamente. Nem coisa que se pareça! Gosto das praias do ‘meu’ querido Brasil, onde a água é quente e a extensão dos areais me permitem caminhadas a preceito.
Porém mentiria se lhe dissesse que não ligo às normas de beleza e que não olho de soslaio para o meu corpo. Reconheço, sem custo, que ele me inquieta e provoca algum desconforto. Realmente não tenho o morfotipo que gostaria de patentear; falta-me sobretudo a musculatura peitoral ideal, aquela dos artistas de cinema, que me daria tanto jeito para poses de masculinidade e para encher bem as camisas do meu tamanho, já que me são justas no pescoço e me sobram nos ombros.
Mas que hei-de eu fazer? Ir para ginásios de musculação, à procura do que me falta e para não deixar adormecer e amolecer o sistema de músculos, tendões, ossos e articulações?! Eu sei que devia ir e que esse era o passo certo. Mas não vou; e por três óbvias razões. Em primeiro lugar, porque há quem diga que ao exagero muscular corresponde algo de castração funcional. Logo não me parece sensato deitar fora uma coisa tão estimável e que é motivo de franco e tão sentido orgulho. Em segundo lugar, porque não creio que, na minha madura e sábia idade, os defeitos possam ser eliminados e os ganhos compensem a dureza nua e crua do investimento. Em terceiro lugar – e é aí que bate o ponto! -, porque toda aquela parafernália de máquinas me lembra uma câmara de tortura. Quando lá vou – faço-o algumas vezes! – aqueles exercícios dóiem até dizer chega. Ora não me parece feliz corolário de uma vida continuar a macerá-la, isto é, a marcá-la com o esforço, com a falta de prazer e até com a dor. Já bastam os pesadelos de terror, que me invadem nas horas acordadas, quando me lembro (apesar dos anos que já lá vão!) do sofrimento que foi fazer a cadeira de ginástica no curso do INEF.

Claro que não deixo de me exercitar. Privilegio os exercícios que metem corrida, como é o caso do futebol (em que se joga e afia a língua). E assim alcanço uma boa dose de compensação: é certo que o sex-appeal não me favorece no peito, mas transborda a olhos vistos nas pernas. Como não ir à praia mostrá-las?! E depois há também os braços que, embora não dando nas vistas pela grossura da massa muscular, irradiam fluidos de carícias, sobretudo pela insinuação que se desprende das mãos ágeis, leves e delgadas. Para não falar nos olhos, de uma mescla de tons de verde e azul, carregados de mensagens e promessas de amor e felicidade em cenários de romantismo!
Vejo-me, pois, entre Édipo e Narciso, a descontar nos defeitos do corpo. Concluo que eles não se notam, nem me oprimem sobremaneira, em comparação com a riqueza e a expressividade dos sonhos, desejos e imaginários que o corpo desencadeia. No fundo todos temos alguma coisa de belo e de interessante para exibir e para ser cobiçado. Por isso irei à praia nestas férias e continuarei a ir nas outras que ainda estão por vir.

1 comentário:

Luís Leite disse...

Perdoar-me-á o Prof. Jorge O. Bento, mas Miguel Ângelo (Michelangelo Buonarroti), não foi um artista que "engordasse" especialmente as personagens temáticas, tanto na pintura como na escultura, muito menos a "Madonna".