quarta-feira, 1 de agosto de 2012

A propósito da educação física e do desporto na escola


As medidas anunciadas pelo governo relativamente à educação física e ao desporto escolar são uma desvalorização da disciplina e dos seus profissionais. Constituem um verdadeiro retrocesso no ensino público. São um produto de gente culturalmente analfabetizada, para quem saber ler, escrever, contar e falar inglês é suficiente. E são um teste ao valor das declarações retóricas do governo sobre a importância das atividades físicas e desportivas. E sobre as preocupações relativamente aos modos como os jovens constroem os seus estilos de vida.
A decisão é do governo. Mas o terreno foi-lhe preparado. Nada disto é filho de pais incógnitos. Para perceber o que se está a passar é preciso voltar atras. E recordar que há cerca de três décadas, e quando se começaram a acentuar as teses de retorno à matriz identitária do início do século- a pureza da educação física contra os malefícios do desporto e da competição- houve, nessa altura, quem alertasse para o problema que consistia em desvalorizar a principal matéria de ensino, o desporto, em nome de uma certo purismo académico da educação pelo movimento e da aptidão física sem conteúdo normativo. E sobretudo sem uma prática escolar que correspondesse à retórica argumentativa dos seu profissionais. Houve quem denunciasse aquilo a que conduzia a disciplina ao mimetizar os tiques de pedagogismo que invadiram o sistema de ensino público arrastando-a, por força da contaminação das chamadas ciências da educação, para uma lógica de verdadeiro descompromisso social quanto ao carácter prático e utilitário dos saberes e das competências que devia fornecer aos alunos. A obsessão didática assente em crenças de suposto valor científico fizeram com que a educação física e o desporto na escola perdessem a sua alma. E a formação de professores de educação física, sobretudo nas ESE, foi qualquer coisa de aterrador. A prazo o resultado só podia ser um: algo facilmente descartável. Porque se pretendia justificar e defender uma disciplina através de uma narrativa de utilidade social que os factos não sustentavam. Ninguém nos podia levar a sério. E com isso se perdeu o carater conspícuo da educação física e do desporto na escola. Enquanto, cá fora, aumentava a procura de atividades físico /desportivas.
A resposta à situação, agora criada, não está na ciência. Ou em enunciar um conjunto de vantagens que os alunos supostamente beneficiariam e que perdem com a medida anunciada. Bem podem acumular-se objetivos salutogénicos, como a luta contra sedentarismo e a obesidade, que qualquer observação atenta e séria sabe que o contributo concreto da disciplina tal como é ministrada, é perfeitamente inócuo. Chegámos aqui, em parte, precisamente por causa deste tipo de boa ciência servida por uma má prática. A resposta a este problema está na política e na capacidade corporativa dos profissionais de educação física perceberem por que razão se chegou a este ponto. E baterem o pé. Mas para isso precisam de mudar de estratégia. E entenderem o que está em jogo. Desde logo para que serve a educação física na escola. E o mal que lhe faz se a levarmos para algo que não seja o trabalho e o investimento corporal dos alunos orientado para a condição físico-motora, para uma educação corporal com conteúdos culturalmente significativos de que o desporto, o aperfeiçoamento e a performance desportiva são um dos seus elementos preferenciais.Que é o contrário de uma espécie de recreio animado com a presença do professor, que foi aquilo em que muitas aulas se transformaram. O discurso do deixar-andar e do facilitismo, de que a escola, mais do que um local de trabalho, de esforço e de superação, em torno das condutas físico-motoras devia ser um espaço de ambiente agradável, não constrangedor, facilitador das aprendizagens, respeitando as “necessidades” e “personalidades” dos alunos não foi um contexto organizacional muito estimulante para respeitar a educação física. Sobretudo quando no clube desportivo ou no health club a coisa, para muitos técnicos, alunos e pais, passou a fiar mais fino. E onde era preciso apresentar trabalho e resultados.
Sei que ao dizer isto me exponho a que caia o Carmo e a Trindade. E que mil razões, cientificas e outras, esgrimirão contra estes argumentos. E não sobrarão as críticas. Paciência. É o que penso e não tenho vontade de o silenciar. É evidente que nestas coisas sempre houve exceções: a de muitos docentes que deram o melhor de si aos alunos e à profissão e que não merecem esta desvalorização. A de instituições de formação que se recusaram a alinhar na moda. Uns e outros têm autoridade moral para falar e denunciar o atropelo ministerial. Mas este é o resultado de muitos que, na ausência de qualquer controlo e exigência profissionais, desvalorizaram o seu objeto de trabalho e com ele a profissão. E esses são, junto da comunidade, os melhores aliados desta decisão governamental. Por muito que digam o contrário. E que agora a contestem.

Publicado na edição do jornal Público de 28.7.2012

2 comentários:

Luís Leite disse...

300% de acordo!
É exatamente assim, a nossa realidade na área da Educação Física, na Escola Pública.

Anónimo disse...

Safa! Finalmente alguém tem a coragem de escrever o que era preciso ser escrito!